PERA, CALMA. Uma fêmea nervosa, aflita, não encontra resposta para um dos dramas mais cruéis da humanidade no capítulo amoroso. Ela assina uma carta com uma identidade misteriosa, M. Srta M, chamemos assim a missivista. É um lamento, um gemido, uma angústia que jorra incontrolada de sua alma desiludida de moça sonhadora: por que, cargas d’água, a gente só se lembra das coisas boas depois do adeus?
Normalmente eu suprimiria as cargas d’água, por ser uma expressão gasta, mas ali, da maneira que a Srta M a colocou, o velho clichê ganhou uma força nova, um vigor juvenil. Mantive-o, então.
A interrogação desesperada da Srta M é sinal de que provavelmente neste instante ela lamenta um amor perdido que em sua memória é belo como um poema de Bandeira e ensolarado como um dia de dezembro na Vila Mar, ali pertinho do Bira’s Bar, onde passei os verões deslumbrantemente fugidios da adolescência.
Imagino a Srta M, braços elevados para os céus, os olhos úmidos, buscando uma resposta para um dos caprichos do amor que mais nos machucam: a sensação torturante, cruel como um cossaco russo e ríspida como um cigano búlgaro, de que perdemos de bobeira, por desleixo, algo que não soubemos valorizar e cuidar quando podíamos e devíamos.
Mas não dos céus, e sim da caixa de comentários, aparece uma resposta científica, objetiva, neurológica, quase que completamente inatacável. Anarcoplayba traz a luz da ciência e da razão onde antes havia a treva da emoção e da dor. Acode a Srta M com a voz da medicina. Um amigo médico lhe contou tudo.
Copio e colo, por mérito do autor:
“As boas recordações são neurologicamente mais estáveis que as más recordações.
Ou seja, enquanto as coisas boas ficam ecoando na sua cabeça, as ruins vão “fading out”, ficando borradas, apagando, sumindo.
Não é que você “só lembra das coisas boas depois que acaba”, é que você, enquanto está próxima dos eventos, está num turbilhão de sentimentos bons e ruins. Quando a história acaba, os ruins vão sumindo e os bons ficam. Daí a ilusão de que “não era tão ruim assim”.
Era, mas você esqueceu.”
Graças a essa explicação, Anarco conta que evitou o risco de voltar para um amor mofado. Recolheu suas coisas no dia seguinte à ruptura, antes que fosse vítima do ritmo desigual das recordações.
Cética quase que no limite da descrença, ligeiramente mordaz como quem zomba elogiando, Karina questionou a neurologia do fracasso amoroso e se estabeleceu, então, um bonito duelo de palavras, argumentos e idéias. Encarnavam os dois o antigo combate entre a razão e a emoção. Rafa, provavelmente no intento de apagar memórias afetivas doídas, pediu prontamente mais informações, e recebeu-as de Anarco. Terminaram a conversa com promessas, Anarco de trazer ainda mais ciência, Rafa de ir à Academia do Google, que eu não sabia existir. Karina, depois de quase proferir o hahaha ignominioso do Cafa, o que finaliza e some, se recolheu.
Quanto a mim.
Sempre terminei, sem conhecer a explicação científica que a neurologia ao que tudo indica oferece, vendo o passado sob lentes que evidentemente o tornavam mais azul do que era. A dor da despedida, assim, não raro ardeu em mim como as lenhas da inquisição, e se muitas vezes eu não gritei foi por autocontrole estóico e não por falta de vontade.
Até o dia em que li um sábio da Antiguidade.
Ele dava um conselho básico no amor perdido: fazer a lista dos defeitos de quem deu uma bota em você e olhá-la uma, duas, quantas vezes for necessário. Relembrar, nos detalhes sádicos, as agressões, as palavras ruins, as noites perdidas por conta das brigas. Mentalizar, para usar a terminologia neurológica, a mesquinharia, a patifaria, as mentiras, todas as decepções que levaram a relação ao crematório da Vila Alpina.
Pode demorar um pouco, mas esse método, se seguido disciplinadamente, neutraliza a explicação científica tão bem anotada por Anarco: a permanência teimosa das boas lembranças e o apagamento quase que instantâneo das más.
Foi ruim, e por isso acabou. Foi mais que ruim. Foi péssimo, um pesadelo. Ponto. Por isso acabou. Sorte sua.