Ouvi ontem uma velha canção e como revi você, Fernanda. A canção, talvez lhe interesse saber, é o tema daquele filme aéreo, Aeroporto. Ouvi-a, de modo mais marcante que nunca, numa festinha a que fomos ambos, você e eu. Era uma noite de sábado leve a morna. Acho que era verão. Mas não garanto, pois todas as noites leves, mornas e, mais que tudo, saudosas parecem pertencer ao verão, como se só ao verão coubesse o privilégio das boas recordações.
A canção tocava lenta e suave, e os casais arrastavam langorosos os pés, afundando com comovente felicidade no misterioso poço da paixão. Eu me encostava a um pilar, solitário, acompanhando-a com os cantos dos olhos; e você, Fernanda, dominava com sua beleza suave o salão, o rostinho colado ao peito de um rapaz que, francamente, não merecia tê-la nos braços. Confesso que na época não via você sem que me gelasse o estômago. Raras vezes na vida esta sensação iria se repetir.
Lembro bem quando nos conhecemos. Foi na festa de 12 anos da Marisa. Era meu terceiro baile, e eu não estava adequadamente preparado para ele. Era incapaz de dançar músicas rápidas. Não havia jeito. Nas lentas, eu me virava, mesmo pisando uma ou duas vezes por minuto (o que somava cinco ou seis pisões por música) o pé azarado da parceira.
Mas nas rápidas, oh meu Deus, eu era um desastre. Mas amigo é amigo. O Laerte, baixotinho e ágil, se propôs ensinar-nos, ao Márcio e a mim, a dançar. Horas antes do baile nos reunimos no quarto do Márcio e ensaiamos as músicas que depois tocariam. Era assim: o Márcio e eu dávamos uns passos, e o Laerte nos corrigia. “Tá errado, pessoal, tá errado”. Ele nos mostrava então os passos supostamente corretos, a maneira de ir para cá e para lá. Era um espetáculo, visto agora de longe, que nada ficava a dever a uma comédia da dança. Mas nós três levávamos tudo a sério.
Foram horas de treino. O baile começou pelas oito da noite. Havia oito meninos e sete meninas. Não desmerecendo as demais, você era de longe a mais bonita, Fernanda. Usava um vestidinho amarelo e estava quietinha a um canto. Parecia preferir observar a tomar parte. Depois notei que você enrubescia a qualquer gracejo, inclusive os que não lhe eram dirigidos. Você era tímida, falava com vagar; além de péssimo dançarino, eu era tímido também. O caminho entre você e mim me parecia intransponível, como se um abismo nos separasse. Nem sei como me aproximei de você, Fernanda.
Nosso primeiro contato não foi propriamente um diálogo, mas um gaguejo sem fim.
– Prrr… a … zer – eu disse, estendendo-lhe a mão.
– Prrr… a … zer – você disse e, nervosa, nem tomou conhecimento de minha mão, parada no ar como uma borboleta distraída. Não nos dissemos os nomes, lembra?
Não, está claro que não foi um grande início. Quando nada, porém, serviu de ponte no abismo entre nós. Dançamos um pouco e, pelo meio da festa, apoiado no exemplo do Laerte, que pedira com êxito a Elaine em namoro, propus a você ser minha namorada. Você pediu tempo — anos talvez — para pensar. Pensou três minutos e, sem mostrar maior euforia, como se respondesse à chamada escolar, disse sim. Não houve um beijo comemorativo, mesmo porque eu, ao menos, não sabia beijar. Nosso primeiro passeio oficial, na mesma noite, foi uma volta ao quarteirão. Éramos três casais (o Márcio e a Cristina se acertaram), e caminhávamos a uma distância não tão longa que nos impedisse de ouvir, se não toda, o essencial da conversa alheia. Foi um passeio divertido.
Durou pouco nosso namoro, cerca de uma semana. Segunda-feira fui buscar você no ginásio, conversamos com certo desembaraço, fomos até o ponto de ônibus, você me pagou a passagem sem que eu pudesse evitar, e de notável não aconteceu mais nada. Ah, sim, trocamos um beijo singelo no rosto. Éramos dois pirralhos, eu tinha 13 anos, você sequer completara 12, talvez lhe faltassem até alguns dentes.
O namoro teve vida curta, mas o fascínio que você exerceu sobre mim sobreviveu-lhe, e foi adiante, adiante, e adiante. Quando sabia que você estava na casa da Marisa, inventava um pretexto e voava para lá. Me parece que você também guardou uma lembrança boa de mim; não ouso dizer fascínio. Soube que uma noite seu novo namorado deu uma bronca em você porque, ao me ver perto, você disse alto: “Olha o Fabio!” Fiquei, naturalmente, lisonjeado com seu grito, apesar de só ouvi-lo depois, ecoado por uma confidente.
Cresci eu, cresceu você, e acabou-se. Você diminuiu, pouco a pouco, sua freqüência à casa da Marisa, de quem fora a maior amiga, em cujos ombros chorara e gargalhara. Até que você sumiu. Eu ainda obteria, da Marisa, notícias de você. Depois de algum tempo, porém, ela mesma, Marisa, já não sabia nada. Jamais soube de vocês duas romperam, e não toquei no assunto com a Marisa. Recordar uma amizade morta é demasiado triste. Deve fazer quase dez anos que não a vejo, Fernanda, e a lembro (me perdoe a grosseria) remotamente, sem qualquer emoção que ombreie com o fantástico gelo no estômago. Nada é tão forte que resista à ausência – nem o ódio nem o amor e nem a dor.
É provável que nunca mais nos encontremos. Assim a relembrarei apenas ao ouvir os acordes lentos do tema de Aeroporto; e então relembrarei também aquela noite morna, eu sozinho, você radiante, o rostinho no peito de um garoto que infelizmente não era eu; e a volta ao quarteirão, uma palavra qualquer que a memória exume; e o grito “olha o Fabio!” que não ouvi. E é melhor que seja assim. Não quero correr o risco de vê-la mudada. Prefiro acreditar, e acredito, juro que acredito, que você será sempre a menina tímida, de olhos enormes e de vestidinho amarelo – a eterna Fernanda, a mais bela da festa da Marisa, se lembra?
Nota do autor: “Escrevi este texto aos 23 anos, dez anos depois da festa citada nele, e o achei recentemente. Nunca mais encontrei a garota que o inspirou, mas ainda hoje, muito tempo depois, a “menina tímida, de olhos enormes e de vestidinho amarelo” me vem imediatamente à lembrança quando ouço o tema de Aeroporto.”