Archive for Abril, 2008

O ÚLTIMO REDUTO DO MACHO

30/04/2008

” Um homem só é feliz ao lado de uma mulher se é dele o controle remoto.” Foi o que me disse outro dia meu amigo Guillermo. Guillermo foi vítima da Mulher Exigente. Alessandra, sua namorada, transformou-o num escravo. Ela escolhia os filmes no cinema, os DVDs, as peças de teatro. Ela escolhia os restaurantes, as viagens, os hotéis. Ela escolhia as posições sexuais e as preliminares. Aliás, demoradas e extenuantes mesmo para uma pessoa atlética como Guillermo.
E a morte: ela não lhe dava a menor chance de pegar o controle remoto.
A Mulher Exigente não é uma espécie exatamente nova. Na Bíblia, você encontra muitas delas, como Betsabá, que mandava no rei Davi, que mandava em todos. (Para tê-la, Davi enviou o marido de Betsabá à frente de uma guerra. O objetivo era que ele morresse, o que logo aconteceu.) A Mulher Exigente, repito, não é novidade. Mas o fato é que, nos tempos recentes, com o avanço feminino em todas as áreas, do escritório ao futebol, ela se multiplicou espantosamente.
A Mulher Exigente parece se vingar, em cada homem, da dominação masculina secular. O homem não é um parceiro, um cúmplice, a metade de um todo. O homem é o concorrente a ser batido. Como uma gladiadora sem direito a férias nem fins de semana, a Mulher Exigente está em combate o tempo todo. Ela quer espaço, mas não em pedaços. Ela quer todo o espaço.

A Mulher Exigente despreza o avental e a cozinha. Despreza sua mãe, sua avó e todas as antepassadas que se curvaram ao pérfido domínio masculino. Despreza o homem. No fundo, a Mulher Exigente prefere um vibrador a um macho, porque é mais fácil de manejar. A frase masculina que mais a excita sexualmente, dita num timbre tímido e amedrontado, é: “Posso?”
Ela não fala, grita. Ela não pede, manda. Ela não cede, impõe.
E ela, paradoxalmente, é nossa cria. Nós inventamos nosso inimigo. Nós a demos à luz. Nós e nossa covardia culpada. Porque nós nos sentimos culpados por ser homens e mandar, desde sempre. Nós caçávamos os javalis enquanto elas ficavam no conforto aquecido da caverna, nós nos expúnhamos ao frio e aos dentes da fera e, mesmo assim, carregamos um sentimento de culpa que se refinou ao correr dos longos dias e foi dar na proliferação da Mulher Exigente.
Somos vítimas não da Mulher Exigente, mas de nós mesmos.
Viramos subalternos, ganhamos a docilidade pétrea de recrutas perante generais. Nos transformamos em pó. Somos chicoteados e agradecemos ao chicote e à mão que o empunha pela deferência em nos escolher como alvo.
A queda da Bastilha selou a Revolução Francesa. Entendi, pela expressão aterrorizada de meu amigo Guillermo, que a Bastilha de nós, homens, é o controle remoto. Ao perdê-lo, perdemos tudo. É o último reduto do homem que não se rende, a sua Excalibur. A derradeira esperança, a tocha trêmula numa escuridão espessa.
A Mulher Exigente vai mandar você deletar este texto.
E você vai deletar.

Os melhores anos de minha vida

27/04/2008

Há uma cena num romance de John Updike que me comove. Updike é um dos maiores romancistas contemporâneos, e seus livros têm sempre uma sexualidade intensa e elegante. Mas o trecho a que me refiro não tem nada de lascivo. É a morte de Harry Angstrom, o Coelho. Harry fora um astro do basquete universitário e levou as marcas disso até seu último dia. Ele jamais lidou bem com a idéia de que seus dias de celebridade tinham passado e que agora ele era um simples revendedor de carros japoneses. Acima do peso, colesterol alto, um casamento monótono como sermão de padre espanhol ou conversa de advogado. A morte como que o redime. Já na casa dos 60 anos, com o coração combalido, ele um dia está andando e vê alguém jogar basquete na rua, uma cena comum nos Estados Unidos. Ele não podia se esforçar, por causa do coração, mas entra no jogo. E morre. Na morte, ele afinal se reencontra com o que de melhor houve em sua vida. O basquete, os tempos jovens e sonhadores em que as coisas tinham um significado maior que vender carros da Toyota e arrastar um casamento enfadonho.
Júlio César, o imperador romano. Ele disse que a maior dádiva que os deus podem conceder a alguém é uma morte rápida. Os deuses a concederam ao Coelho, e como bônus lhe deram uma última cesta.
As lembranças mais potentes que carregamos são as da juventude. É quando temos coragem, embalamos sonhos, acreditamos em algo além de uma carteira cheia de dinheiro e cartões de crédito. O tempo nos tira a ousadia, a petulância, a fé cega que nos faz crer que nenhum obstáculo é intransponível, escreveu Cícero, o maior orador que a humanidade gerou.

Ao crescer, diminuímos.

As tentativas desesperadas de rejuvenescimento explicam-se nessa diminuição. O homem que faz implante de cabelo, ou se submete a uma cirurgia plástica para tirar rugas, ou passa a andar com mulheres bem mais jovens, ou engole Viagras, ou faz tudo isso e outras coisas mais, esse homem não busca a aparência perdida.

Ele busca, na verdade, a alma perdida. Ele procura, perplexo, a si próprio.

Foi o que fez Harry Angstrom ao correr atrás de uma bola de basquete que podia matá-lo. Uma bola gloriosamente, mortalmente redentora. Ao pensar em Harry e o basquete, me ocorrem o futebol e eu. Nada me fascinou tanto, na vida, como uma partida de futebol. Fui um pequeno astro na adolescência, mais ou menos como Harry. Uma contusão acabou aos 15 anos com meu sonho de ser jogador de futebol.
Desloquei o fêmur esquerdo. Epifiólise. Jamais esqueci o nome técnico do mal que me tirou dos gramados que tanto amara. Lembro do cheiro da grama recém-cortada ou molhada como do perfume da mulher amada. Não sei se alguma desilusão amorosa, posteriormente, teve o mesmo impacto da dor de meu sonho infantil destruído. Durante um bom tempo, nem sequer ver futebol na televisão eu conseguia. Como doía, Deus, como doía. A bola para sempre perdida. Um sentimento de fracasso, impotência, melancolia. Desespero. Eu nascera para ser jogador, e aos 15 anos era como se minha vida tivesse perdido o rumo e o sentido.

Lembro meu último jogo na categoria para garotos. Mirim. Eu chegara ao limite da idade. Um empate nos classificava, mas uma falha do goleiro nos eliminou. No carro, a caminho de casa, meu pai me disse: “Você vai se lembrar desses anos como os melhores da sua vida”. Ainda agora parece que ouço, com clareza, suas palavras. Lembro o ponto exato da cidade em que ele disse cada sílaba. Logo depois disso, o fêmur me traiu.

Foram mesmo os melhores anos de minha vida.

Papai estava certo. Minhas fotos naquela época mostravam um menino loirinho, olhos arregalados e brilhantes como os de Natasha, uma bola sempre por perto. Nunca estivemos tão ligados, meu pai e eu, como naqueles dias de futebol. Me pergunto agora o que amei mais naquela época: a bola ou a intimidade intensa com meu pai? Oh God I miss him so much, o verso daquela canção tão bonita de Elton John e Bernie Taupin me ocorre agora ao pensar em meu pai. Talvez um dia, como aconteceu com Harry, apareça uma última e redentora bola na minha frente. Deus, como gostaria de repetir o gesto maravilhosamente irresponsável do velho Harry e chutá-la, uma última e definitiva vez, como o Coelho, e partir como ele depois de um fugaz reencontro com os melhores dias de minha vida, como o Coelho, nós dois que fomos jovens astros de esportes diferentes, e depois desabamos cruelmente, e para sempre, de nossas ilusões.

Thunder trocou o pneu furado

25/04/2008

Meu amigo Thunder achava que tinha encontrado o amor de sua vida. Tereza, dizia ele, era perfeita. Repórter da seção de cultura de um grande jornal. Bonita, loira de cabelos que escorriam quase até a cintura, sexualmente petulante, inteligente. Falava de Proust, de Almodóvar e de artes marciais, e não recusava as fantasias de Thunder. Piercing no seio, que ela dizia deixá-la em estado de contínua excitação, tatuagem de golfinho na virilha esquerda. Tudo bem que Thunder é uma gangorra sentimental, sempre à procura da mulher perfeita, mas sua descrição de Tereza me fez acreditar que aquela história duraria pelo menos algumas semanas. Não durou mais que dez dias. Quando Thunder me disse por que tinha demitido de sua vida uma mulher tão sensacional como Tereza, vi que ele tinha toda razão.

Tereza era a Mulher Tagarela.

Um homem suporta muitas coisas. Dor de dente, congestionamento, jogadores mercenários. Pedágios que se multiplicam, Claudia Leitte e Ivete Sangalo, o mosquito da dengue. Filas. Sogras, juízes de futebol, supermercados sábado pela manhã. É incrível a resistência do homem às calamidades.

O que não dá para suportar é a Mulher Tagarela.

Tereza, me disse Thunder, era uma Mulher Tagarela. Seu assunto favorito, como sempre acontece nesses casos, era ela mesma. Tereza se julgava uma eterna manchete. Contava suas histórias com entusiasmo barulhento. Seus olhos se arregalavam ao falar de si própria. Não havia pausa, não havia brechas pelas quais o pobre Thunder conseguisse deter o vulcão verborrágico da loira espetacular. “Tudo bem que a mulher fale antes e depois do sexo”, me disse Thunder em sua estupefação tola. “Mas durante fica difícil. Não estou falando de conversa sexual. Ela me contava coisas como o elogio que tinha recebido do chefe, e de como tinha sido merecido. Uma vez ela me falou como tinha roubado o namorado rico e poderoso de sua irmã. Uma outra vez ela abriu os olhos subitamente e me disse se podia me fazer uma pergunta. Eu disse sim, e ela perguntou se eu podia trocar o pneu furado do carro dela. O pior é que troquei imediatamente.”

A Mulher Tagarela não tem limites. Simplesmente detesta ouvir. Depois de escassos segundos de aparente atenção, você nota em seus olhos fugidios que ela não esta ouvindo. Seus pensamentos estão na verdade voando em torno dela mesma. Nada do que você faz é capaz de prender o interesse da Mulher Tagarela. Por isso ela não tem amigas e nem amigos. É amiga apenas de si mesma. Thunder é um jornalista aspirante a escritor. Contou empolgado a Tereza que uma editora de livros tinha decidido publicar o seu primeiro romance. O primeiro romance publicado de um aspirante a escritor é mais importante que o primeiro sexo ou que a primeira vez que dirige um carro. Ela bocejou e pediu a ele que fosse buscar um copo de água para ela. Metade gelada, metade natural. Estava com sede.

Foi quando Thunder desistiu. Não sem antes, é verdade, ter providenciado o copo sob medida de água para Tereza.

Thunder queria o básico. Nada além do básico. “Ela não precisava nem ler o manuscrito”, ele me disse. “Bastava pedir uma cópia e depois dizer que tinha achado alguns trechos legais.” Nos poucos dias em que estiveram juntos, Thunder conheceu compulsoriamente toda a história de Tereza. Detalhes em geral pouco animadores de seus namorados passados. Johnny falhara algumas vezes. Lúcio tinha ejaculação precoce e se recusava a enfrentar a verdade e procurar um médico. Danny Boy gostava de vê-la com outro cara na cama. Edu, com certeza, não escovava os dentes. Tavito nunca tinha lido um livro, era um burro. Bruno achava que Sergio Leone era um jogador de futebol do Milan.

A Mulher Tagarela só tem palavras positivas para ela mesma.
Apenas uma espécie se compara a ela.
É o Homem Tagarela.

Álbum de casamento

21/04/2008


Estamos vendo o álbum de casamento de meu irmão Jose. Me vejo em algumas fotos na igreja, mas não na festa num sítio próximo de São Paulo. Digo a minha cunhada, que me mostra o álbum, que naquele dia tive um compromisso profissional, e ela concorda. Depois me lembrei que na verdade tinha um jogo de futebol no campeonato do clube, mas achei melhor que ela considerasse o importante compromisso profissional do jovem cunhado jornalista.
Quantas pessoas queridas nas fotos, e quantas já mortas. Mas aquele foi um dia feliz, A Perfect Day, como cantou Lou Reed. Meu pai, por exemplo. Ele estava tão alegre. Poucas curvas adiante meu pai estaria morto, e uma família feliz como a nossa teria para sempre uma ausência dolorida, cortante, num certo e prolongado momento dilacerante. Nós nos amávamos tanto, nós sete, meus irmãos e meus pais, e jamais nos acostumamos por inteiro a ser seis. Diminuímos em número, diminuímos na alma.
Estou sem namorada naquele casamento. A mulher que me acompanha em algumas fotos era uma velha tia solteira, neurastênica, reumática – e incrivelmente maravilhosa. Ela me ensinou a jogar buraco, e ficou para mim gravado eternamente o estilo simples com que ela manobrava suas cartas. Canastra suja, poucos jogos, e a batida que surpreendia os adversários cheios de cartas e sonhos frustrados. Numa outra vez escrevi que aquela minha tia foi a única pessoa que acreditou que eu vomitei a noite toda num verão em Ribeirão Preto por causa de amendoins e não por causa de sucessivas batidas de pinga. Foi meu primeiro e inesquecível fogo, aos 16 anos, e pelo resto da vida minha tia me recomendava extremo cuidado com amendoins. A Tio Julio, menos crédulo, bastou aspirar uma vez o ar do quarto em que eu estava. “Isso é cachaça pura”, disse em sua voz estentórea de Fred Flintstone. Tio Julio rasgava o baralho quando perdia um jogo de buraco, e depois andava pelas ruas de Ribeirão em busca de um bar aberto para comprar um copag. Tio Julio não gostava de perder jogos de xadrez para mim. Naquele tempo eu lia livros de xadrez, e estudava partidas ilustres.
Não vejo Tio Julio no álbum de casamento de meu irmão. Não deve ter tido jeito de vir de Ribeirão a São Paulo, imagino. Uma foto. Me detenho numa foto na festa. Os amigos, vários deles, uns de pé, outros abaixados como um time de futebol. Ah, éramos jovens, éramos jovens, como diz o último trecho de Os Maias, no qual os amigos Carlos e Ega erram pelas ruas de Lisboa e lembram os dias de sonhos construídos e destruídos. Não estou na foto, e me detenho em cada um dos rostos de garotos dos meus amigos. Ali o Minhoca, adiante o Belisco, agachado o Banus, e alguns outros chapas. Um deles não reconheço imediatamente. Pergunto a meu irmão Jose quem era. Ele olha por alguns momentos, respira fundo e diz: “O Eduardinho.”
O Eduardinho. O Edu. Está de pé naquela foto. Talvez o único entre todos que não tenha um sorriso forte no rosto. Parece preocupado, o Edu, o Eduardinho. Olha sério para a câmara. Parece um goleiro na foto oficial de um jogo nervoso e decisivo. Lembro de um casaco preto de couro do Edu. Era o máximo. Jamais tive um tão bonito. O Edu parecia preocupado. Sei lá. Poucos anos depois o Edu estava num caixão. Arrumara uma briga num bar. Eu não disse, mas o Edu era valente. O cara pegou um revólver e descarregou no Edu. E O Edu estava armado apenas com seus braços finos e atrevidos, e não tinha outros escudo que não seu casaco de couro preto.
Nós amigos fizemos, jovens ainda, uma das coisas mais tristes que existe na vida de um homem. Carregamos seu caixão, e dissemos entre nós lembranças do Edu que nos aqueceram num dia gelado enquanto ele era enterrado. A Perfetc Day. Do avesso. E eis que aparece ali aquela foto do álbum de casamento do meu irmão Jose, e nela o Edu, o Eduardinho, que não nos acompanhou na caminhada de beleza miserável por essa terra tão fugidia, e era valente e tinha um casaco preto como eu jamais tive e nem terei. O Edu, aquele ali de pé no canto, o único que não ri para a câmara, o Eduardinho.

Dedicado à memória de Eduardo Bueno

Felizes para sempre

17/04/2008

Tolstoi disse que as famílias felizes se parecem, mas as famílias infelizes são infelizes cada qual a sua maneira. É uma frase célebre, e que abre Anna Karenina, um dos maiores romances jamais escritos. E lá vou eu para uma digressão: Anna é, ao lado de Capitu, de Machado de Assis, a adúltera mais fascinante da literatura. As duas se entregaram: Anna, ao ficar em estado de choque quando seu amante nobre, Vronski, caiu do cavalo numa corrida. Capitu, ao mostrar dor maior que a da viúva no velório do amante, Escobar, melhor amigo de seu marido. Anna terminou sob as rodas de um trem, num suicídio. Capitu, de olhos oblíquos e dissimulados, foi repudiada pelo marido e morreu solitária no abandono europeu. Nem Tolstoi nem Machado trataram bem suas formidáveis adúlteras. Um filósofo escreveu que é mais fácil não começar do que terminar. Para as duas, teria sido definitivamente mais fácil não começar uma história fora do casamento.

Mas não. Não era sobre isso que eu ia falar. Era sobre as famílias infelizes. Elas não nascem infelizes quase nunca. São felizes, e um simples fato ao acaso as faz infelizes. Penso neles, na família Brandão. Minha mente recua alguns anos, e ali os vejo.
Brandão, a mulher e as duas filhas. As garotas são lindas e têm uma característica que multiplica o encanto da mulher bonita: elas parecem não se dar conta de sua beleza de fazer bispo olhar para trás e chutar poste. As filhas do Brandão, no seu apogeu, eram lendas em vida no seu círculo. Admiradas, cobiçadas, amadas por, bem, todos nós.

Era uma família feliz. Casa bonita, o pai bem colocado, a mãe vigorosa e enérgica, e filhas que, bem, filhas que deslumbravam. Um dia, uma delas, a mais velha, olhos verdes como as águas ao entardecer do mar de Salvador, errou na dose de alguma droga e perdeu a razão para nunca mais recuperá-la. A família feliz se tornou infeliz para sempre.

Vi isso de perto. A filha caçula fez o chão tremer para mim. Já escrevi aqui que, segundo Hemingway, três vezes o chão treme na vida dos apaixonados. Não mais que três. Está lá, numa das passagens de Por Quem os Sinos Dobram, um romance quase tão bom quanto Anna Karenina.

A caçula dos Brandão fez o chão tremer para mim. Às vezes me pergunto se também fiz o chão tremer para ela, mas é apenas um devaneio sem sentido. Talvez sim, talvez não. Rio agora do choro tolo e convulsivo que me tomou quando a perdi. Os anos me tornaram um cínico amoroso, reflito.

Perdi o contato com a família. Soube há pouco que a mãe das garotas morreu. Quase ninguém foi avisado. Estou aqui com o número do celular da caçula. Não sei se terei coragem para ligar. De resto, para dizer o quê? Que lamento as ruínas do mundo em que ela foi uma jovem rainha? Que na minha memória a felicidade da família jamais foi perdida?

Sêneca.
Sêneca, meu filósofo favorito, falou no perpétuo vaivém de elevações e quedas. De como é sábio se preparar para isso. A vida é feita de elevações e quedas. No campo pessoal, profissional, amoroso.

Eu queria tanto reagir com sabedoria à queda da família Brandão. Mas não consigo. E então subverto a realidade aqui nesta página. E crio, como num sonho bobo, um final em que nada destruiu a felicidade daquele quarteto que tanto admirei e amei. No momento em que ia tomar a dose que a enlouqueceria, a mais velha decidiu, como um samurai, como o maior deles, Musachi, combater o vício com a espada da determinação. Derrotou-o gloriosamente. O pai, a mãe e as duas filhas: ali estão os quatro, na varanda floreada em que recebiam os que chegavam encantados como eu, sorridentes como diante de um fotógrafo. .

“As mulheres não são engraçadas”

13/04/2008


Acabei de ler a última Vanity Fair. Para muitos é a melhor revista do mundo. Americana. A capa é uma resposta a um ensaio feito por um provocador brilhante chamado Christopher Hitchens: “As Mulheres Não Têm Graça”. Ele dizia que o cinema jamais produziu comediantes mulheres notáveis, e nem a televisão, salvo uma ou outra exceção, como Lucille Ball. O feminismo fez mal para o humor feminino. Hitchens nota também que as mulheres, ao contrário dos homens, lidam mal, amargamente, com os sinais de decadência física. Os homens fazem disso graça, e as mulheres se atormentam. O artigo de Hitchens, bem como a resposta, está em http://www.vf.com.
A capa da edição que acabo de ler afirma: “Quem Disse Que as Mulheres Não Têm Graça?” Uma capa soberba, foto de Anne Leibowitz, uma das melhores fotógrafas do mundo. (Alguém conhece aquela capa da Rolling Stone em que Lennon, nu, aparecia em posição de feto na cama ao lado de Yoko? Anne Leibowitz.) Três comediantes jovens na capa, mulheres, e uma delas segura delicadamente o seio esquerdo de outra. Esta a noção feminina de graça? Only in America. Só nos Estados Unidos. Nós homens temos outro nome para isso. Lol.
O texto se esforça, mas a única mulher realmente engraçada que a VF conseguiu encontrar foi Jenna Fischer, de The Office. Verdade. Ela é muito engraçada. The Office é uma série incrivelmente espirituosa, e Jenna Fischer é um de seus pontos altos. Aquele chefe. Steva Carell. O cara é absolutamente divertido. Você ri só de olhar, como acontecia com Jerry Lewis. Ou com Jim Carrey. Homem. Liz Kudrow, de Friends, é ótima. Ok. Concedo. Mas a lista das comediantes mulheres não preenche os dedos de uma mão.
Certo. Você vai dizer: poxa, mas eu sou engraçada. Meu namorado ri de quase todas as minhas piadas. Por exemplo aquela que … Tudo bem. Também me acho divertido. relativamente. Jamais pensei em ser comediante, mas já sonhei ser roteirista de seriado divertido como Friends ou Seinfeld. Então. Sou engraçadinho, acho. Mas não é na pessoa física que estou pensando. É na pessoa “pública”. Gente que faz rir por ofício.

Penso no Brasil. Que comediante talentosa a TV brasileira produziu? E o cinema? E a imprensa? Na imprensa os humoristas de gênio: Péricles, alguns caras do Pasquim, Zé Simão, Chico Caruso. Homens. Hitchens está certo. Levante a mal, e atire pedras, mas só com argumentos e mais que isso nomes, quem tiver outra opinião. Ah, sim. Tenho que dizer que as mulheres possuem tantos, tantos atributos únicos e incomparáveis – ah, sua beleza, sua suavidade, seu andar, e seus decotes de fazer bispo olhar para trás e chutar o poste — que podem muito bem passar sem o incrível senso de humor típico de nós homens. Lol. Laughing outloud, lol, como a gente escreve abreviadamente nos chats online de pôquer. Lol.

A paixão e a gastrite

09/04/2008

Poucas coisas são mais cultuadas que a paixão romântica. É bonito, dizem, estar apaixonado. Você volta a ser um adolescente sonhador, iconoclasta, mesmo que já tenha passado dos 30 ou mesmo dos 40. Você retoma a criatividade embolorada. É capaz até de mandar flores e, mais ainda, de escrever versos lindamente medíocres. Você se olha com renovado interesse no espelho. Capricha no penteado depois de anos de desleixo. Refaz o guarda-roupa. Considera até a possibilidade de se depilar para ficar na moda ou parecer mais atraente para ela. Viagra, talvez, para não correr riscos de mau desempenho. Alguns pensam até na hipótese de aprender a tocar violão para impressioná-la com um dedilhado que será inevitavelmente tosco. E todos com certeza cantam alto em seu carro as músicas adocicadas prediletas que colocam para ouvir e se inspirar neste momento mágico de deslumbramento.

A paixão é linda, é o que dizem. E é também horrível. Uma das aberturas de romance mais aclamadas da história da literatura diz o seguinte: “Era o melhor dos tempos, e também o pior”. O autor é Dickens.

O mesmo se aplica para a paixão. Ela nos eleva e nos rebaixa ao mesmo tempo. Vou ser direto: a paixão nos faz burros, ridículos, irresponsáveis. O mais complicado é que ela faz tudo isso e além do mais nos engana: temos a convicção de que ela nos torna o oposto. Charmosos, quase irresistíveis.

O apaixonado é um sofredor. Ele não dorme. Ele come mal. Se ela telefona, ele tem uma crise de euforia. Se o telefone emudece obstinadamente, é motivo de aguda depressão. Se ela corresponde, ele é o rei do mundo. Se não, ele pensa alternadamente em matar ou morrer. Às vezes, nas duas alternativas. Ou numa terceira, se ela estiver interessada em outro cara.

Nenhum apaixonado de verdade escapa da gastrite. A gastrite é a prova definitiva do amor verdadeiro. E não qualquer gastrite, mas aquela que leite nenhum ameniza ou cura. Porque o problema está na mente insana, e não no estômago castigado.

Os filósofos discordam uns dos outros em quase tudo. Montaigne disse que não há nada que alguém diga, nem o seu contrário, que não tenha sido defendido por algum pensador. Um dos raros pontos em que os sábios concordam é exatamente na paixão: se você conseguir se livrar dela, se você for forte e perseverante o suficiente para dominá-la, você vai ser um cara feliz. Não será escravo de antidepressivos e de calmantes. Não vai acordar seus amigos e amigas durante a madrugada para desabafos intermináveis. Nem se deixará entrar no egocentrismo insuportável do apaixonado, para quem a vida se resume a ela e ela. O resto, dane-se. A paixão fecha nossos ouvidos. Só falamos. Não conseguimos escutar nada e ninguém fora dos limites do nosso amor. Tente conversar com um apaixonado. Ele não vai registrar nada do que ouvir. Ele não vai derramar uma mísera lágrima pela história mais triste que você lhe contar.

Uma paixão está rondando você? Chute.
E trocará uma eternidade de angústia por um minuto de desalento. Mas — como Montaigne escreveu – eu poderia estar aqui defendendo o contrário, com a mesma convicção.

Et nunc et semper dilectae dicatum

05/04/2008

Pego um Balzac ao acaso. Numa época li compulsivamente Balzac, para mim o maior dos romancistas de todos os tempos. A Comédia Humana, sua grande obra, um número extraordinário de histórias e personagens reunidas em quase vinte volumes. As Ilusões Perdidas, parte deste conjunto majestoso, é meu romance favorito de Balzac. O título é tocante. As Ilusões Perdidas. Quem de nós não teve ou não tem ilusões, e quem de nós não as perdeu ou as perderá? Ah, você não leu As Ilusões Perdidas? Corra. Certas coisas a gente tem que fazer antes de morrer. Uma delas, um amigo me disse um dia, é matar uma tarde de trabalho para ver uma sessão de cinema das duas. Era o sonho daquele amigo, e ele não o tinha realizado até o dia em que candidamente me fez a confissão cinematográfica e vespertina. Outra coisa que a gente tem que fazer antes de morrer é ler As Ilusões Perdidas.
Abro ao acaso um volume da Comédia Humana. É o romance Luís Lambert. Vejo a dedicatória balzaquiana. . Agora e como sempre dedicado à mulher amada. Latim. Balzac chamava de Dilecta sua primeira amante, uma mulher casada, Laure de Berny. No romance O Lírio do Vale Laure apareceu como Sra. De Mortsauf.
Amante. Que mulher não experimenta uma vibração intensa ao realizar o sonho, a fantasia ou o pesadelo de ter um amante? Madame Bovary, de Flaubert, outro dos meus romancistas amados, e um competidor sério de Balzac como o maior entre os maiores, Madame Bovary, eu dizia, gritou quando para si mesma quando consumou o adultério. “Tenho um amante, tenho um amante”. Não terminou bem ela, e nem outras adúlteras maravilhosas da literatura, como Ana Karenina e Capitu. A Luísa de Eça, atirada ao sexo extraconjugal por seu primo Basílio. Final triste para todas. Terão os romancistas sido fiéis à realidade dura do adultério ou ao moralismo masculino? Não sei, não sei. Ouço agora Amy Winehouse. Aquele cabelo anos 60 de Amy. Love is a losing game. O amor é um jogo de perda.
Volto a Balzac. Folheio Balzac e chego a um ensaio chamado Fisiologia do Casamento. Um trecho menor de A Comédia Humana. Mas o menor de Balzac é grande. Reparo num aforismo. Reflito sobre ele, mas não chego a uma conclusão consistente. Gostaria de chamar Balzac e perguntar a ele exatamente o que ele quis dizer. “Uma mulher honesta é aquela que os amantes temem comprometer”. Você entendeu melhor que eu? Sei apenas que é uma frase de gênio. Fecho Balzac. Um compromisso me chama. Uma mulher honesta é aquela que os amantes temem comprometer. A frase, que não compreendo, me enleva pela assombrosa beleza com que as palavras se encadeiam. Eu. As coisas que escrevo. O que me inspira. Minhas palavras de escritor barato. Minhas pequenas folhas na relva. Dedico-as a … sei lá. Balzac pode me ajudar. .

O grito que não ouvi

02/04/2008

Ouvi ontem uma velha canção e como revi você, Fernanda. A canção, talvez lhe interesse saber, é o tema daquele filme aéreo, Aeroporto. Ouvi-a, de modo mais marcante que nunca, numa festinha a que fomos ambos, você e eu. Era uma noite de sábado leve a morna. Acho que era verão. Mas não garanto, pois todas as noites leves, mornas e, mais que tudo, saudosas parecem pertencer ao verão, como se só ao verão coubesse o privilégio das boas recordações.
A canção tocava lenta e suave, e os casais arrastavam langorosos os pés, afundando com comovente felicidade no misterioso poço da paixão. Eu me encostava a um pilar, solitário, acompanhando-a com os cantos dos olhos; e você, Fernanda, dominava com sua beleza suave o salão, o rostinho colado ao peito de um rapaz que, francamente, não merecia tê-la nos braços. Confesso que na época não via você sem que me gelasse o estômago. Raras vezes na vida esta sensação iria se repetir.

Lembro bem quando nos conhecemos. Foi na festa de 12 anos da Marisa. Era meu terceiro baile, e eu não estava adequadamente preparado para ele. Era incapaz de dançar músicas rápidas. Não havia jeito. Nas lentas, eu me virava, mesmo pisando uma ou duas vezes por minuto (o que somava cinco ou seis pisões por música) o pé azarado da parceira.
Mas nas rápidas, oh meu Deus, eu era um desastre. Mas amigo é amigo. O Laerte, baixotinho e ágil, se propôs ensinar-nos, ao Márcio e a mim, a dançar. Horas antes do baile nos reunimos no quarto do Márcio e ensaiamos as músicas que depois tocariam. Era assim: o Márcio e eu dávamos uns passos, e o Laerte nos corrigia. “Tá errado, pessoal, tá errado”. Ele nos mostrava então os passos supostamente corretos, a maneira de ir para cá e para lá. Era um espetáculo, visto agora de longe, que nada ficava a dever a uma comédia da dança. Mas nós três levávamos tudo a sério.
Foram horas de treino. O baile começou pelas oito da noite. Havia oito meninos e sete meninas. Não desmerecendo as demais, você era de longe a mais bonita, Fernanda. Usava um vestidinho amarelo e estava quietinha a um canto. Parecia preferir observar a tomar parte. Depois notei que você enrubescia a qualquer gracejo, inclusive os que não lhe eram dirigidos. Você era tímida, falava com vagar; além de péssimo dançarino, eu era tímido também. O caminho entre você e mim me parecia intransponível, como se um abismo nos separasse. Nem sei como me aproximei de você, Fernanda.
Nosso primeiro contato não foi propriamente um diálogo, mas um gaguejo sem fim.
– Prrr… a … zer – eu disse, estendendo-lhe a mão.
– Prrr… a … zer – você disse e, nervosa, nem tomou conhecimento de minha mão, parada no ar como uma borboleta distraída. Não nos dissemos os nomes, lembra?

Não, está claro que não foi um grande início. Quando nada, porém, serviu de ponte no abismo entre nós. Dançamos um pouco e, pelo meio da festa, apoiado no exemplo do Laerte, que pedira com êxito a Elaine em namoro, propus a você ser minha namorada. Você pediu tempo — anos talvez — para pensar. Pensou três minutos e, sem mostrar maior euforia, como se respondesse à chamada escolar, disse sim. Não houve um beijo comemorativo, mesmo porque eu, ao menos, não sabia beijar. Nosso primeiro passeio oficial, na mesma noite, foi uma volta ao quarteirão. Éramos três casais (o Márcio e a Cristina se acertaram), e caminhávamos a uma distância não tão longa que nos impedisse de ouvir, se não toda, o essencial da conversa alheia. Foi um passeio divertido.

Durou pouco nosso namoro, cerca de uma semana. Segunda-feira fui buscar você no ginásio, conversamos com certo desembaraço, fomos até o ponto de ônibus, você me pagou a passagem sem que eu pudesse evitar, e de notável não aconteceu mais nada. Ah, sim, trocamos um beijo singelo no rosto. Éramos dois pirralhos, eu tinha 13 anos, você sequer completara 12, talvez lhe faltassem até alguns dentes.
O namoro teve vida curta, mas o fascínio que você exerceu sobre mim sobreviveu-lhe, e foi adiante, adiante, e adiante. Quando sabia que você estava na casa da Marisa, inventava um pretexto e voava para lá. Me parece que você também guardou uma lembrança boa de mim; não ouso dizer fascínio. Soube que uma noite seu novo namorado deu uma bronca em você porque, ao me ver perto, você disse alto: “Olha o Fabio!” Fiquei, naturalmente, lisonjeado com seu grito, apesar de só ouvi-lo depois, ecoado por uma confidente.
Cresci eu, cresceu você, e acabou-se. Você diminuiu, pouco a pouco, sua freqüência à casa da Marisa, de quem fora a maior amiga, em cujos ombros chorara e gargalhara. Até que você sumiu. Eu ainda obteria, da Marisa, notícias de você. Depois de algum tempo, porém, ela mesma, Marisa, já não sabia nada. Jamais soube de vocês duas romperam, e não toquei no assunto com a Marisa. Recordar uma amizade morta é demasiado triste. Deve fazer quase dez anos que não a vejo, Fernanda, e a lembro (me perdoe a grosseria) remotamente, sem qualquer emoção que ombreie com o fantástico gelo no estômago. Nada é tão forte que resista à ausência – nem o ódio nem o amor e nem a dor.

É provável que nunca mais nos encontremos. Assim a relembrarei apenas ao ouvir os acordes lentos do tema de Aeroporto; e então relembrarei também aquela noite morna, eu sozinho, você radiante, o rostinho no peito de um garoto que infelizmente não era eu; e a volta ao quarteirão, uma palavra qualquer que a memória exume; e o grito “olha o Fabio!” que não ouvi. E é melhor que seja assim. Não quero correr o risco de vê-la mudada. Prefiro acreditar, e acredito, juro que acredito, que você será sempre a menina tímida, de olhos enormes e de vestidinho amarelo – a eterna Fernanda, a mais bela da festa da Marisa, se lembra?

Nota do autor: “Escrevi este texto aos 23 anos, dez anos depois da festa citada nele, e o achei recentemente. Nunca mais encontrei a garota que o inspirou, mas ainda hoje, muito tempo depois, a “menina tímida, de olhos enormes e de vestidinho amarelo” me vem imediatamente à lembrança quando ouço o tema de Aeroporto.”