Archive for Agosto, 2007

Reencontro

28/08/2007

E então ouço uma canção ao acaso de um controle remoto que zapeava sem rumo e sem objetivo. A imagem que aparece é a de um programa de televisão com as cem melhores canções de filmes. Lá está Seems Like Old Times, de Annie Hall, para mim o maior filme de Woody Allen. Poucas vezes o cinema captou com tamanho lirismo a essência de uma relação amorosa, a glória e a miséria sempre associadas ao homem e à mulher cujos braços se entrelaçam.

Imobilizo o controle e fixo a atenção em Diane Keaton, no auge da feminilidade, cantando Seems Like Old Times. Parece como nos velhos tempos. Ela está num bar. As pessoas conversam nas mesas. É a primeira vez que ela canta em público. Um público bêbado e desagradável, como é sempre o público de um bar em que o cantor será eternamente um coadjuvante na noite, mas ainda assim é um desafio para ela. Ela titubeia, parece fraquejar, mas triunfa ao escandir as palavras tocantes de Seems Like Old Times. A música trata de um reencontro, e eu não sei por que fecho sempre os olhos e viajo para remotas paragens no trecho em que o narrador afirma que ainda se comove ao caminhar ao lado daquela que ficou para trás.

Não haverá volta, é apenas um reencontro, e isso torna tudo ainda mais belo em Seems Like Old Times. Em Annie Hall, a letra da canção se transforma em realidade. Os dois se separam e, tempos depois, ao andar pelas ruas de Manhattan, recordam cenas do grande amor que viveram. Pareciam os velhos tempos, mas depois que se despedissem os dois retomariam cada qual a sua nova vida. Há uma intensa carga de melancolia nos reencontros, e isso a fita de Woody Allen e a canção que a simboliza mostram magistralmente. Não haverá dia seguinte, não haverá noite seguinte, não haverá novos capítulos. Dói, como dói. As lembranças atormentam em vez de acalentar. Onde nos perdemos de nós mesmos, onde foi? Essa pergunta emerge tenebrosa e cruel nos reencontros, e sempre sem resposta lógica.

“Fuja dos reencontros amorosos”, me recomendava Tio Fabio, um homem sábio do interior. Este era um dos pontos cruciais da cartilha sentimental de Tio Fabio, um homem cultivado na filosofia e na arte da galanteria. O tempo me fez entender a advertência de Tio Fabio. Os casos de amor nunca terminam suficientemente bem para que permitam reencontros doces. Se o final foi calmo, é porque não foi amor real. Os amantes arrastam sua paixão muito além do razoável. Uma história de amor verdadeira termina antes da despedida. Em alguns casos, bem antes. Os dias, as semanas em que os dois permanecem juntos sem que na verdade estejam são neuróticos. Destrutivos.

No mundo perfeito, os casos de amor terminariam na hora certa. No último beijo que funcionou. Na última vez em que o amor e a generosidade triunfaram sobre o ódio e a mesquinharia. Mas isso não acontece. A gente sempre ultrapassa o ponto ideal no término dos relacionamentos. É a maldição dos homens e mulheres apaixonados. A quem hesita diante do telefone para ligar para uma amor perdido em busca de um reencontro com o de Annie Hall, lembro as palavras de Tio Fabio. Só telefone se foi um amor de mentirinha.

Reencontro

28/08/2007

E então ouço uma canção ao acaso de um controle remoto que zapeava sem rumo e sem objetivo. A imagem que aparece é a de um programa de televisão com as cem melhores canções de filmes. Lá está Seems Like Old Times, de Annie Hall, para mim o maior filme de Woody Allen. Poucas vezes o cinema captou com tamanho lirismo a essência de uma relação amorosa, a glória e a miséria sempre associadas ao homem e à mulher cujos braços se entrelaçam.

Imobilizo o controle e fixo a atenção em Diane Keaton, no auge da feminilidade, cantando Seems Like Old Times. Parece como nos velhos tempos. Ela está num bar. As pessoas conversam nas mesas. É a primeira vez que ela canta em público. Um público bêbado e desagradável, como é sempre o público de um bar em que o cantor será eternamente um coadjuvante na noite, mas ainda assim é um desafio para ela. Ela titubeia, parece fraquejar, mas triunfa ao escandir as palavras tocantes de Seems Like Old Times. A música trata de um reencontro, e eu não sei por que fecho sempre os olhos e viajo para remotas paragens no trecho em que o narrador afirma que ainda se comove ao caminhar ao lado daquela que ficou para trás.

Não haverá volta, é apenas um reencontro, e isso torna tudo ainda mais belo em Seems Like Old Times. Em Annie Hall, a letra da canção se transforma em realidade. Os dois se separam e, tempos depois, ao andar pelas ruas de Manhattan, recordam cenas do grande amor que viveram. Pareciam os velhos tempos, mas depois que se despedissem os dois retomariam cada qual a sua nova vida. Há uma intensa carga de melancolia nos reencontros, e isso a fita de Woody Allen e a canção que a simboliza mostram magistralmente. Não haverá dia seguinte, não haverá noite seguinte, não haverá novos capítulos. Dói, como dói. As lembranças atormentam em vez de acalentar. Onde nos perdemos de nós mesmos, onde foi? Essa pergunta emerge tenebrosa e cruel nos reencontros, e sempre sem resposta lógica.

“Fuja dos reencontros amorosos”, me recomendava Tio Fabio, um homem sábio do interior. Este era um dos pontos cruciais da cartilha sentimental de Tio Fabio, um homem cultivado na filosofia e na arte da galanteria. O tempo me fez entender a advertência de Tio Fabio. Os casos de amor nunca terminam suficientemente bem para que permitam reencontros doces. Se o final foi calmo, é porque não foi amor real. Os amantes arrastam sua paixão muito além do razoável. Uma história de amor verdadeira termina antes da despedida. Em alguns casos, bem antes. Os dias, as semanas em que os dois permanecem juntos sem que na verdade estejam são neuróticos. Destrutivos.

No mundo perfeito, os casos de amor terminariam na hora certa. No último beijo que funcionou. Na última vez em que o amor e a generosidade triunfaram sobre o ódio e a mesquinharia. Mas isso não acontece. A gente sempre ultrapassa o ponto ideal no término dos relacionamentos. É a maldição dos homens e mulheres apaixonados. A quem hesita diante do telefone para ligar para uma amor perdido em busca de um reencontro com o de Annie Hall, lembro as palavras de Tio Fabio. Só telefone se foi um amor de mentirinha.

A mulher infiel

27/08/2007

Talvez nada nos apavore tanto quanto a idéia de que estamos sendo traídos. É engraçado. Sentimos um medo pânico dessa hipótese. E no entanto nós mesmos, homens, tratamos de dar uma dimensão patética a isso ao usar desenfreadamente palavras como corno e chifrudo. O homem gosta de trabalhar contra ele mesmo, eis uma das máximas de tio Fábio, um homem sábio do interior. Poucos insultos têm, para nós, o poder destruidor de corno ou chifrudo. Quando estamos com raiva de alguém, mas com muita raiva mesmo, gritamos, nem que seja mentalmente, que se trata de um corno.
Corno manso, então, alcança uma escala ainda maior, eu diria mesmo inatingível pela concorrência, na lista das ofensas.

Você. Você mesmo. Alguém o irritou? Claro: o cara é um chifrudo.
Vocês gosta até de, com as mãos, armar chifres imaginários nas piadas com amigos. Mas espere um pouco: eu também faço isso. (Que papel ridículo e hipócrita o meu de dar sermão sobre um vício que pratico.) Todos nós, na verdade, fazemos o mesmo. Ou quase todos nós, salvo os santos e os iogues. Xingamos, desabafamos e nos divertimos com os cornudos e os chifrudos que nos rodeiam.

Tudo bem. Quer dizer, tudo bem até que você descubra que foi traído. Que todas aquelas piadas parecem ter sido feitas para você. Não basta a realidade de um outro homem invadindo a nossa namorada ou a nossa mulher. Logo acrescentamos as imagens produzidas por nossa mente, destrutivamente criativa nessas horas. Todos os detalhes aparecem diante de nós: as carícias, as preliminares. É virtualmente impossível deixar de pensar no ato de baixar a calcinha. Ou pior, ser baixada. E depois, bem, o que vem depois é como um roteiro de filme erótico: gemidos, palavras obscenas, êxtases insuportáveis. É também difícil deixar de ver o cara com o cigarro, encerrado a maratona sexual que nossa mente criou tão vivamente, com o triunfal sorriso de escárnio dos soldados conquistadores depois de vencida a batalha definitiva. É o inferno na versão masculina.

Não é de espantar a desesperada agonia que costuma nos tomar de assalto quando sabemos que fomos traídos. Uns homens matam, outros morrem, alguns matam e morrem. Surge imediatamente aquela indagação perplexa e infantil, em geral acompanhada de um chute na parede: justo eu? Eis o paradoxo: achamos incrível, inaceitável algo que é tão comum, tão velho quanto comer bananas. No instante em que escrevo esta frase inúmeros homens estão sendo traídos. Por que só você e eu, entre todos os homens, haveríamos de estar livres do risco de sermos enganados?

A maior das ilusões é achar que o que acontece aos outros não pode acontecer a nós, gosta de dizer tio Fábio, formidável em sua voz estentórea. Isso vale para tudo: doenças, perdas, demissão, ciúmes. Quando entendemos que todos têm seus problemas, que não somos apenas nós que carregamos um peso considerável, as adversidades perdem pelo menos parte de seu impacto. E então recorro a mais uma frase de tio Fábio: o que distingue as pessoas é a maneira como elas lidam com os problemas. Os mais fracos sucumbem até diante de uma brisa. Os mais fortes aceitam a vida como ela é, com suas inevitáveis asperezas. E resistem a tempestades. Ser traído não torna melhor ou pior ninguém, não engrandece nem diminui ninguém. É um fato tão comum quanto tudo o que existe sob o sol. Ao transformá-lo em algo extraordinário, damos-lhe um peso cruelmente equivocado e sofremos muito além do razoável.

Historia Incompleta

25/08/2007

Não, nós não tivemos um final como merecíamos. Explodimos tudo, a começar por nós mesmos. Achei que era impossível vivermos um sem o outro – e, no entanto, vivemos. Releio o que escrevi para você. Sobrou parte, porque quase tudo que escrevi e recebi de você destruí num mau momento. Você foi tão importante para mim quanto a espuma é para a beleza dos mares e a noite para o fulgor das estrelas. E, no entanto, jamais meus olhos haverão de contemplá-la outra vez. A dor da ruptura foi insuportável num primeiro momento. Depois cedeu. Transformou-se numa indiferença que me incomoda. As dores de amor perdido jamais deveriam se extinguir, mas o vento as arrebata como a uma chama trêmula. No grande amor que se desfaz, pior que a dor sentida é a dor extinta.

Nem sei por que escrevo a você. Talvez porque vi hoje uma mulher que me lembrou você nos dias em que éramos reis. Você era uma rainha e fingia sublimemente ser minha súdita e obedecer a todos os meus caprichos. Lembro de você a palavra incisiva. A audácia de quem acha que tudo é permitido. O humor muitas vezes corrosivo.

E uma sede de viver e de amar e de brigar que, vista agora, quase me comove. O sexo em você era tão natural como respirar, andar, conversar. Isso me intimidou e me fascinou a um só tempo. Jamais encontrei outra fêmea como você e, para ser sincero, não lamento. O preço do sexo espetacular é um desassossego igualmente espetacular, e penso que não é razoável pagá-lo mais de uma vez na vida. Talvez duas, não mais. Há um tempo para gozar e há um tempo para se recompor do tumulto do gozo.

Você guardou as coisas que escrevi para você? Durante um tempo, imaginei que algumas daquelas coisas fariam você sorrir bem mais para a frente. Quando já fosse avó e talvez nem se lembrasse das paixões que despertara na juventude. Minhas palavras seriam uma ponte rumo a dias frenéticos, ensolarados, que a gente tolamente imaginou que perdurariam, mas que se foram sem retorno, cruelmente fugazes.

Escrevi sobre aquela noite na praia de Salvador. Você deitada na areia, o vestido amarelo já sem representar obstáculo, o barulho do mar e de nós mesmos na imensidão da areia. Traí você e fui traído por você. Mas sobretudo traímos nós próprios. Não reclamo. O grande amor exige algum tipo de traição. Não sei por que estou escrevendo a você. Ou sei? Especulo comigo mesmo que talvez tenha faltado alguma coisa. Fizemos tudo e desfizemos tudo. Parecia uma história completa. Começo, meio, fim. Mas algo faltou. Eu gostaria de dizer simplesmente obrigado por tantas coisas boas e de certa forma também pelas não tão boas. Desfrutei as primeiras e aprendi com as segundas. Mas é tão tolo, não é?, esse tipo de agradecimento. Tão bobo que me recuso a admitir gratidão para sempre a quem quer que seja, os deuses, o diabo, você mesma, por um dia tê-la colocado em minha vida.

Os refrões perdidos da felicidade

24/08/2007

Música e amor. Não existe um grande amor sem uma grande música para marcá-lo. Se não existe a música é porque não existe e nem existiu o amor. Essa a minha tese amorosa musical. Outro dia escrevi que opostos, ao contrário da crendice, se repelem – e não se atraem – nas relações entre homem e mulher. Isso vale para o gosto musical. Dois gostos musicais diferentes podem ser um indício de dificuldades no amor. Li algo parecido num romance do escritor inglês Nick Hornby, e concordei imediatamente.

Mas não era sobre isso que eu queria escrever. Ou melhor: é sobre música, mas não exatamente sobre gostos musicais. É sobre as músicas que, como num filme em que de repente aparecem cenas passadas, automaticamente nos remetem a uma certa época e a uma certa pessoa. As músicas dos amores. As melodias imortais de cada um de nós.

Falei em filme e me lembrei de A Mulher do Lado, de Truffaut. E então sou obrigado a abrir um breve parêntese. Para mim é o melhor filme sobre o amor que já foi feito. O mais perturbador, o mais surpreendente, o mais poético. E o mais cruelmente veraz. Um homem e uma mulher que tiveram uma paixão intensa e neurótica se encontram tempos depois. Ambos estão casados. Mas reatam a ligação na sordidez tentadora da clandestinidade. A mesma carga neurótica logo reaparece. Estou agora mesmo comovido ao me preparar para escrever a frase que simboliza aquele amor trágico: nem com você, nem sem você. A narradora da história diz essa sentença grandiosa no começo do filme e depois a repete no final. Nem com você, nem sem você.

Numa cena, a mulher diz para o homem que as músicas que falam melhor sobre o amor são as mais simples, as mais despretensiosas. Porque elas expressam com clareza, sem rebuscamentos, sem artifícios literários, os sentimentos que realmente nos tocam: eu sinto falta de você. Eu tenho medo de perder você. Você é tudo para mim. Coisas assim. Palavras majestosamente banais ou banalmente majestosas. Truffaut nunca foi tão gênio como ao elaborar essa cena e ao colocar aquela frase na boca da heroína do filme.

Quanto a mim, eu tenho as minhas músicas. A minha pequena e preciosa coleção de melodias imortais. Muitas vezes corro até elas. Mas às vezes também fujo delas. Às vezes, desesperadamente, para esquecer o que não deve ser lembrado. Mas é uma fuga afinal inútil: alguns sons sempre nos alcançam, ainda que por caminhos misteriosos, e cumprem a dupla função de nos enlevar e nos machucar. Por isso os amamos e odiamos ao mesmo tempo. Eles são, para usar a sublime frase de Proust para descrever a desgraça amorosa de Swann, os refrões perdidos da felicidade.

Agora mesmo ao vir para a redação ouvi, sem querer, uma das minhas músicas. Juro que eu não queria. Eu estava apenas, como sempre, errando de uma estação para outra no rádio do carro, sem rumo como um velho vagabundo. De repente, como num ataque traiçoeiro, fragmentos daquela melodia invadiram meus ouvidos e em seguida meu coração. Mudei imediatamente de estação, mas não adiantou.

É uma música em inglês. E bem tola, como anotou a mulher do filme de Truffaut. O final da letra diz, numa versão livre que ouso fazer, mais ou menos o seguinte: depois de todos os amores da minha vida, você ainda será o maior, e eu seguirei me perguntando por quê. E então me ocorre que passamos a existência inteira nos fazendo exatamente essa pergunta: por quê. E por mais que nos esforcemos jamais encontramos a resposta.

Tempo de morrer

22/08/2007

Existe uma passagem num livro do Machado de Assis que acho maravilhosa. (É de Memórias Póstumas de Brás Cubas, se não me engano. Mas atenção: posso estar enganado. A verdade que estar enganado tem sido um dos eventos mais freqüentes de minha vida.)

A cena é a seguinte. O protagonista encontra um bilhete. Era para marcar um encontro clandestino. Quem o mandara fora a mulher casada com quem ele mantinha um caso. O caso, tórrido no início, vinha lentamente morrendo. Ao ver o bilhete, seu coração disparou. Como no começo. Mas depois ele verificou que se tratava de um bilhete velho. E então que o sobressalto excitado cedeu lugar à melancolia nostálgica. Aquele amor estava perdido, para sempre perdido.

A cena machadiana é, para mim, o retrato perfeito das estações inexoráveis que um caso de amor percorre. Existe um tempo de nascer e um tempo de morrer. Existe um tempo de florescer e um tempo de declinar. Isso está escrito, de um forma muito mais bela, num dos pedaços mais sábios da Bíblia, o Eclesiastes. Há um tempo para tudo. (Quem me deu esse capítulo bíblico para ler foi meu Tio Fabio, um homem sábio do interior. Eu estava arrasado com o fim de um namoro e ele me disse: “Lendo isso você vai aprender que há um tempo para rir e um tempo para chorar. E também que, a rigor, não há nada de novo sob o céu”. Para mim, Tio Fabio é um homem tão sábio quanto o Eclesiastes.)

Mas o que eu queria mesmo dizer é que, também para o amor, existe um tempo para nascer e um tempo para morrer. É muito mais fácil identificar a primeira etapa do que a segunda. E é também muito mais fácil de lidar com a primeira. O surgimento do amor arrebata. É uma explosão tão poderosa que não há como não perceber, por mais distraído, por mais insensível que você seja. Você acha graça até num congestionamento. (E então me ocorre que amar pode ser perfeitamente definido como a capacidade de achar graça num congestionamento.) Você descobre que, pensando bem, seu chefe horroroso até que tem seu pontos positivos. Isso quer dizer que você está amando.

Essa é a parte bonita: o nascimento do amor. A parte dura é a outra: o tempo de morrer. Você não quer acreditar. Você finge que tudo é igual. Você pratica a forma suprema da mentira: mente para você mesmo. Era para sempre, não era? E quando enfim você admite interiormente que o amor morreu, a dor é tanta, tanta que você resiste pateticamente a dar curso prático a essa admissão e terminar o caso. E então o que se vê são finais dolorosos de amores que morreram já há um bom tempo. Finais cruéis. Cruéis como… sei lá, cruéis como um velho cossaco russo, como diz meu Tio Fabio.

Num mundo perfeito, os braços se desenlaçariam em despedidas supremas (essa linda expressão não é minha. É da Eça de Queiroz. Estou citando muito?) tão logo fosse percebida a morte do amor. Mas o mundo está longe de ser perfeito. E então se prolonga uma situação de miséria em que tudo que se consegue é um ferir o outro. Em que não se ganha nada senão mágoa e ódio. . Todos nós lutamos em vão contra o tempo de morrer quando o que está em jogo é o amor. Aprender a lidar com a morte amorosa é uma das maiores conquistas que alguém pode fazer na vida. Tolamente recusamos até o fim – na verdade até depois do fim – a idéia de que nosso amor partiu para a sinistro reino do nunca mais, nunca mais, nunca mais.

Sexo e desespero

15/08/2007

O sexo pode ser a mais sublime e a mais destruidora manifestação do desespero. Um homem desesperado agarra-se ao sexo como alguém que procura, perplexo e assustado, proteção num temporal repentino. Uma mulher desesperada faz o mesmo. Quando a gente olha para as coisas e não vê sentido, e se pergunta por que, por que, por que, o sexo quase sempre aparece como uma resposta formidável, irresistível. E poderosamente ilusória. O sexo é a esperança de vida. O sexo é a esperança de ressurreição vitoriosa de um caso de amor derrotado. O sexo pode ser um anestésico de curta mas intensa duração para as dores da alma.

Naqueles minutos em que os corpos estão engalfinhados, o desespero cede uma trégua. A aflição como que descansa. Aquela volúpia tão fugaz, aquele êxtase precário por natureza, aquele fragor destinado em breve ao silêncio enfastiado, todas essas coisas parecem por um momento capazes da eternidade. O bêbado de desespero é o bêbedo de sexo. A pena é que a aflição dure tão mais que o prazer. A angústia é, paradoxalmente, libidinosa. Deus, quantas bobagens sexuais não cometemos movidos pelo desespero, quantos passos desastrados, quantas escolhas erradas, quantos abismos mascarados. Quanta dor imposta e recebida em meio a gemidos de êxtase.

O homem sereno, cuja mente não seja tagarela, não é tragado pelo abismo sexual. O homem sereno não se agasta contra as circunstâncias. O homem sereno aceita as coisas como elas são. O homem sereno comanda a mente em vez de ser comandado por ela. O homem sereno não se importa nem com o louvor, nem com a critica. O homem sereno não se perturba diante do fracasso, nem diante do sucesso. O homem sereno não se deixa levar pelos delirantes arroubos do ego. O homem sereno não é grande senão por saber que é pequeno, não é sábio senão por saber que não se sabe nada. O homem sereno prefere jogar uma partida de buraco a se meter numa aventura sexual complicada com a mulher mais gostosa e mais neurótica do bairro.
O problema é que não existem homens serenos.
E muito menos mulheres serenas. O que existe é a serenidade. Mas, como as velhas escrituras tão bem registram, é mais difícil conquistar a serenidade do que conquistar o mundo. É preciso reflexão, perseverança, paciência, fé e todos aqueles atributos que parece que quanto mais perseguimos, mais distantes ficam.

Você. Eu. Nós dois. Foi o desespero que nos uniu, disfarçado em amor. (Mas, Deus que disfarce, que disfarce.) Um escritor barato, uma dançarina de boate tão linda e tão pequena e tão desvairada que eu diria que foi a musa que inspirou Tiny Dancer. “Hold me closer, tiny dancer…” E no entanto tão grande no palco daquela boate decadente do centro da cidade. A falta de perspectiva de nós dois criou a ilusão do horizonte para ambos. Dois perdedores que juntos pareciam um vitorioso. Seus olhos tão tristes, mas fumegantemente vivazes e alegres perante os olhares ávidos e rudes dos homens da platéia. Outros homens devem guardar lembranças bem mais concretas de você. Talvez os seios, talvez a tatuagem de golfinho tão bem localizada. Ou até o feijão com pouco sal. Mas, quanto a mim, a parte que mais me agrada lembrar são os olhos tristemente alegres. Foi o desespero que nos uniu, majestosa dançarina barata. E foi o desespero que nos desuniu.

Os ovos e nós

15/08/2007

Outro dia eu estava falando sobre o final de um dos meus filmes favoritos, Annie Hall (Noiva Nervosa, Noivo Neurótico; ou vice-versa), de Woody Allen. Ah, não estava? Não faz mal. Falo agora. Poucos filmes, acho, conseguiram captar com tanta riqueza, tanta intensidade a dificuldade de um relacionamento. No final, abandonado por sua mulher (o melhor papel de Diane Keaton), o protagonista (ele, claro: Woody) fala sobre os relacionamentos. E usa uma parábola psicanalítica.

É mais ou menos assim: um homem que acredita botar ovos vai ao psicanalista. Este tenta convencê-lo do absurdo que é pensar que bota ovos. O homem até que concorda, mas diz que não vai mudar. “Por quê?”, pergunta o psicanalista. “Porque não posso viver sem os ovos.” Os ovos, no final do filme, fazem as vezes dos relacionamentos. A gente sabe que são absurdos, mas não consegue viver sem eles. (Me perdoem se errei alguma coisa nessa transcrição cinematográfica de cabeça. Prometo, em todo caso, ver o filme de novo antes de voltar a falar dele.)

Ah, antes que esqueça: Diane Keaton cantando Seems Like Old Times, num barzinho de Manhattan, é uma cena absolutamente maravilhosa. Seems like old times/Having you to walk with. (Parece como nos velhos tempos, ter você andando a meu lado.) Mas eu queria falar é da dificuldade dos relacionamentos. Meu Tio Fabio, um homem sábio do interior, costuma dizer o seguinte: “Uma das razões pelas quais nos desiludimos tanto na vida é que nos iludimos demais”. Simples e irretocável, como tudo que Tio Fabio fala. Aquilo vale para tudo: ilusões demais, desilusões demais. Nas relações amorosas a coisa é exatamente assim.

Costumamos iniciar cada romance com a expectativa de um conto de fadas. Nada menos que isso pode ser satisfatório: um conto de fadas em que todos terminemos felizes para sempre. Em que todos somos, eternamente, príncipes e princesas. Queremos do outro que resolva todos os nossos problemas. Todas as nossas frustrações. Que preencha todos os nossos vazios. E, quando isso não acontece, nos sentimos imensamente fracassados. E projetamos no outro toda a responsabilidade pelo fracasso. É o começo do inferno.

Eu diria o seguinte. Um bom passo para tentar um relação melhor é diminuir as expectativas. Contos de fada não existem. Mas existem romances divertidos, intensos e marcantes. Que não precisam necessariamente durar uma vida inteira. Pretensões menores geram decepções menores. Quando vejo um amigo dizer que está vivendo um legítimo conto de fadas, pressinto logo o tombo. Raramente me enganei.

Calma lá. Não estou fazendo uma ode à acomodação. Não estou sugerindo a ninguém que se conforme com uma relação morna como aquela água que você esquece fora da geladeira no verão. Isso é torpor, não romance. Apenas estou recomendando que a dose de expectativa se razoável. Razoável quer dizer: que caiba dentro dos limites da razão. Não da ilusão.

O resto é tentar. Considero “tentar” um dos verbos mais lindos do idioma: denota esforço, sacrifício, combate. Mais de uma vez pensei que meu epitáfio bem que poderia ser este: “Fabio Hernandez – Ele tentou”. Tentar. Sempre tentar, ainda que tantas vezes, em certas noites escuras e frias, tenhamos vontade de dizer: chega, chega, chega. Mesmo porque – bem, nós não podemos viver sem os ovos, podemos?

Os ovos e nós

15/08/2007

Outro dia eu estava falando sobre o final de um dos meus filmes favoritos, Annie Hall (Noiva Nervosa, Noivo Neurótico; ou vice-versa), de Woody Allen. Ah, não estava? Não faz mal. Falo agora. Poucos filmes, acho, conseguiram captar com tanta riqueza, tanta intensidade a dificuldade de um relacionamento. No final, abandonado por sua mulher (o melhor papel de Diane Keaton), o protagonista (ele, claro: Woody) fala sobre os relacionamentos. E usa uma parábola psicanalítica.

É mais ou menos assim: um homem que acredita botar ovos vai ao psicanalista. Este tenta convencê-lo do absurdo que é pensar que bota ovos. O homem até que concorda, mas diz que não vai mudar. “Por quê?”, pergunta o psicanalista. “Porque não posso viver sem os ovos.” Os ovos, no final do filme, fazem as vezes dos relacionamentos. A gente sabe que são absurdos, mas não consegue viver sem eles. (Me perdoem se errei alguma coisa nessa transcrição cinematográfica de cabeça. Prometo, em todo caso, ver o filme de novo antes de voltar a falar dele.)

Ah, antes que esqueça: Diane Keaton cantando Seems Like Old Times, num barzinho de Manhattan, é uma cena absolutamente maravilhosa. Seems like old times/Having you to walk with. (Parece como nos velhos tempos, ter você andando a meu lado.) Mas eu queria falar é da dificuldade dos relacionamentos. Meu Tio Fabio, um homem sábio do interior, costuma dizer o seguinte: “Uma das razões pelas quais nos desiludimos tanto na vida é que nos iludimos demais”. Simples e irretocável, como tudo que Tio Fabio fala. Aquilo vale para tudo: ilusões demais, desilusões demais. Nas relações amorosas a coisa é exatamente assim.

Costumamos iniciar cada romance com a expectativa de um conto de fadas. Nada menos que isso pode ser satisfatório: um conto de fadas em que todos terminemos felizes para sempre. Em que todos somos, eternamente, príncipes e princesas. Queremos do outro que resolva todos os nossos problemas. Todas as nossas frustrações. Que preencha todos os nossos vazios. E, quando isso não acontece, nos sentimos imensamente fracassados. E projetamos no outro toda a responsabilidade pelo fracasso. É o começo do inferno.

Eu diria o seguinte. Um bom passo para tentar um relação melhor é diminuir as expectativas. Contos de fada não existem. Mas existem romances divertidos, intensos e marcantes. Que não precisam necessariamente durar uma vida inteira. Pretensões menores geram decepções menores. Quando vejo um amigo dizer que está vivendo um legítimo conto de fadas, pressinto logo o tombo. Raramente me enganei.

Calma lá. Não estou fazendo uma ode à acomodação. Não estou sugerindo a ninguém que se conforme com uma relação morna como aquela água que você esquece fora da geladeira no verão. Isso é torpor, não romance. Apenas estou recomendando que a dose de expectativa se razoável. Razoável quer dizer: que caiba dentro dos limites da razão. Não da ilusão.

O resto é tentar. Considero “tentar” um dos verbos mais lindos do idioma: denota esforço, sacrifício, combate. Mais de uma vez pensei que meu epitáfio bem que poderia ser este: “Fabio Hernandez – Ele tentou”. Tentar. Sempre tentar, ainda que tantas vezes, em certas noites escuras e frias, tenhamos vontade de dizer: chega, chega, chega. Mesmo porque – bem, nós não podemos viver sem os ovos, podemos?

A grande arte e a dor

09/08/2007

Kurt Cobain. A angústia jovem. Ninguém a captou de forma tão contundente, na história recente do rock, quanto ele e seu Nirvana. Uma passagem de KC me comove particularmente. O acústico do Nirvana na MTV em Nova York. A bandinha de Seatle conquistara a capital do mundo. O palco decorado com flores que evocavam, premonitórias, um velório. A última música. A derradeira. Tell me where did you sleep last night. Entra na lista das maiores interpretações do rock. Talvez a maior. Tão absurdamente épica quanto Sid Vicious sublimemente afrontando e destruindo My Way com seus berros desafinados e maravilhosos a um só tempo. Onde você dormiu a noite passada, pergunta Cobain, primeiro com delicadeza, depois com um grito de dor devastadora. I’m going where the cold wind blows, diz ele. Vou para onde sopra o vento frio. Só a dor mais lancinante produz uma música e uma interpretação daquelas. Pediram ao Nirvana bis. Que voltassem ao palco lúgubre. Os companheiros de Cobain queriam retornar, li depois numa revista americana. Cobain pensou e disse não. Sabia que jamais conseguiria alcançar a grandeza a que chegara em Tell me where did you sleep last night. É lindo de ver na tevê: a música se encerra e imediatamente surgem os letreiros que anunciam o final .Jamais houve bis. Na dor aguda, que mais tarde o levaria a enfiar uma arma na boca e atirar, ele alcançara a grande arte. A grande arte nasce da dor das ilusões perdidas, não da alegria. É a glória e a miséria do artista.

PERFUME DE MULHER

06/08/2007

Li outro dia trechos do livro de memórias escrito por Napoleão quando, miseravelmente abatido e doente, aguardava a morte na Ilha de Santa Helena. Napoleão me impressiona não pela genialidade militar ou pela grandeza histórica. O que realmente me admira em Napoleão são suas observações pessoais e amorosas.

Napoleão, quando estava voltando de alguma campanha no exterior, mandava avisar Josefina. O libidinoso general queria que ela parasse de tomar banho para recebê-lo com cheiro de mulher. Cheiro de mulher. Não há essência que se compare remotamente em poder de arrebatamento ao cheiro de mulher. Napoleão tinha toda a razão. A sorte da multibilionária indústria de perfumes femininos é que as mulheres não concordam com Napoleão. E gastam muito dinheiro para alterar o melhor cheiro do mundo. (Em italiano a frase soa ainda melhor. Profumo di donna, nome de um filme italiano do qual lembro apenas isso, o nome. Há pouco anos Al Pacino foi o protagonista de uma refilmagem.)

De um modo geral, quanto menos a mulher se afasta dela mesma, tanto melhor. Seios naturais, de qualquer tamanho, são melhores que seios com silicone. Cabelos naturais são melhores que cabelos mentirosos. O cheiro pessoal e intransferível de cada mulher é melhor que o melhor perfume.

Mas o que mais me tocou na leitura do memorial de Napoleão foi uma frase que li no prefácio. Não era exatamente uma reflexão amorosa, mas se presta com perfeição às histórias de amor. Acho que o prefácio era de Malraux, mas não estou certo. Como vocês sabem muito bem, minhas certezas são raras. Cada vez mais raras.

A frase dizia mais ou menos o seguinte: tudo que restava a Napoleão, quando decidiu escrever seu relato em Santa Helena, era lutar pela posteridade. Era sua luta mais importante. Mais que Waterloo, mais que Austerlitz, mais que qualquer outra. A luta pela posteridade. As palavras poderiam fazer por Napoleão o que a espada não conseguira. E fizeram. Napoleão venceu a luta pela posteridade. A imagem do grande corso é ensolarada como certas manhãs de dezembro na Vila Mar.

Lutar pela posteridade. Às vezes não restam mais opções que essa para o homem e a mulher. É uma situação típica dos finais de caso. O amor já foi derrotado, inapelavelmente derrotado, como Napoleão em Waterloo, e mesmo assim a gente segue cegamente em frente num caminho de sofrimento, angústia, agressões, humilhações. E então perdemos a luta pela posteridade. A imagem que guardamos de um caso de amor que teve tantas coisas sublimes fica irremediavelmente danificada como uma fotografia cortada por uma tesoura.

É preciso ter coragem para reconhecer quando não resta mais que a luta pela posteridade num romance. Somos sempre tentados a ir adiante, na esperança caótica e vã de ressuscitar o que está morto. Eu perdi algumas lutas pela posteridade. Tenho derrotas doídas em história. Lamento o erro histórico de não ter me recolhido a minha Santa Helena particular em certas ocasiões. Lembranças que poderiam me aquecer nos momentos de frio pela vida afora foram destruídas em finais de caso que se estenderam além do que seria razoável. Saber a hora de terminar o romance em nome da posteridade talvez seja a forma mais sublime, e mais difícil, de sabedoria amorosa. Admitir que o único porto que resta é Santa Helena exige uma coragem de Napoleão.

A grandeza de um amor

02/08/2007


Um dos meus autores prediletos é Graham Greene. Acho que já falei. Estou relendo um de seus melhores romances, Os Farsantes. Recomendo. Jamais esqueci uma passagem que li na primeira vez. O narrador, um inglês dono de um hotel decadente no Haiti, tem um caso com a mulher de um embaixador. Nas reflexões sobre o amor que sente por ela, o narrador pensa no amante de sua mãe, uma mulher cosmopolita a quem o tempo não tirou a sede de viver e de amar. O amante dela era um homem simples, tosco, bem mais novo e bem mais pobre que sua mãe. E bem mais apaixonado também. Ela morre. E ele é encontrado morto num quarto do hotel. Enforcou-se no desespero de ver a amada morta. O narrador conclui, com inveja e admiração e melancolia, que ele próprio jamais seria capaz de um amor tão grande por ninguém.

Era uma vez no Espaço

02/08/2007

Sou um obsessivo musical. Quando cismo com alguma música, ouço-a dezenas de vezes seguidas. Talvez centenas. Aconteceu comigo recentemente com uma velha canção de David Bowie. Space Oddity. Que letra, que melodia, que arranjo, que voz. Space Oddity entra para mim em qualquer lista curta das maiores canções da história do rock.

Mas não é exatamente dela que eu queria falar. É de um trecho da letra. A música fala de um astronauta, o major Tom, que vai mais longe no espaço do que qualquer outra pessoa jamais foi. E depois se perde no espaço para sempre. (Eu me lembrei de Imensidão Azul. Da cena cruelmente poética em que o mergulhador submerge nas profundezas da água para não mais voltar.) O trecho de Space Oddity em que o pessoal da retaguarda percebe que algo dera errado com o astronauta é um triunfo sublime da interpretação. David Bowie diz repetidas vezes, com desespero crescente: “Can you hear me, major Tom?” Não, ele já não ouvia nada em sua jornada pelo espaço. Sempre sinto um arrepio ao ouvir esse trecho.

Mas eu queria falar é de outra passagem da música. Pouco antes de perder o contato com o pessoal da Terra (Ground Control), o astronauta diz: “Tell my wife I love her very much”. E Bowie completa com paixão: “She knows”. Digam à minha mulher que a amo muito. Foi esse o trecho que mais me emocionou entre todos. A declaração singela de amor do major Tom a sua mulher pouco antes de se perder para sempre na vastidão espacial.

Não é uma coisa muito comum. Marido e mulher não compõem exatamente um par romântico na visão dos artistas. O clássico marido é Karenin, de Anna Karenina, o romance de Tolstoi que para muitos (eu não acho isso) é o maior de toda a história da literatura. Karenin é mesquinho, medíocre, vingativo. Não tem nenhum charme. É exatamente o contrário do conde Vronski. Como condenar a pobre Anna por Ter largado Karenin e seu filhinho pelo amante irresistível?

(Quando vejo o filme sobre essa história, sempre penso no seguinte. Ele teria ficado muito mais divertido se o diretor houvesse colocado no papel do marido enganado e abandonado um ator bonitão e no papel do amante arrebatador um ator que só servisse para a função de tio.)

Balzac (para mim o maior entre todos os romancistas) escreveu um livro inteiro para ridicularizar o marido. Os maridos são os personagens mais sem graça da história da literatura. Só têm um competidor nesse campo: as mulheres. Estou falando especificamente das esposas (palavra horrível), não do gênero feminino. Na verdade, quem é tratado a pontapés pela arte é o casamento. É como se o casamento matasse, automaticamente, a magia, o romance.

Tem que ser assim?

Francamente, não sei. Desconfio que não, mas apenas desconfio. Tenho a impressão de que as pessoas fazem muito menos do que deveriam para manter a pujança de um casamento. O marido barrigudo e a mulher de bob na cabeça são mais que meras caricaturas. E então as coisas degringolam.

E termino pensando na declaração espacial de amor do major Tom. Tão rara, tão tocante. Tell my wife I love her very much. E imagino então que a imagem da esposa amada impediu que a dor selvagem da solidão absoluta desabasse sobre a odisséia espacial sem volta do major Tom.

Na escuridão completa do espaço devorador, o amor venceu.