Archive for Setembro, 2007

Os amigos e as mulheres

28/09/2007

Vi, numa revista americana, um anúncio que de alguma forma me comoveu. Acho que era de uma seguradora. Dois garotos estão encostados um no outro e lê-se o seguinte: lembra o tempo em que você podia contar com alguém?

Toquei no anúncio porque decidi falar, mais uma vez, dos amigos. Mais especificamente, das dificuldades que as mulheres acham que os amigos têm influência negativa sobre nós. E sentem um terrível ciúme deles. Como se cada centímetro de espaço que concedemos a nossos amigos representasse um centímetro a menos para elas. Elas mais ou menos nos dizem o seguinte: ele ou nós. Algumas dizem isso de forma mais clara, outras recorrem a sutilezas, mas a essência da mensagem parece sempre a mesma: amigo bom é ex-amigo.

Lembro com detalhes o que aconteceu com meu amigo Totó. Éramos adolescentes e nossa turma era simplesmente incomparável. Duvido que houvesse outra turma, em todo o mundo, tão fantástica. Éramos unidos, diversos nas partes mas coesos no conjunto, e nos amávamos tanto. Sabíamos que, desde que estivéssemos juntos, conquistar o mundo era uma tarefa bem fácil para qualquer um de nós. Pois um dia o Totó arrumou a primeira namorada séria. E a primeira providência dela foi afastá-lo de nós. Relembro a cena ainda com pesar: o Totó passando de mãos dadas com ela na outra calçada, longe da esquina em que nós ficávamos. Claro que essa namorada passou. Mas a mágoa da troca de calçada jamais foi esquecida pelos amigos. (Não me julgo um cara rancoroso, mas também eu jamais esqueci. Releio o que escrevi e noto que nem sequer o nome da namorada mencionei. Revanchismo. Mas aqui vai: Eliane.)

E então digo o seguinte. É um grande erro das mulheres a compulsão de detestar nossos amigos. Eles quase sempre estão do lado de nossas namoradas e nossas mulheres. Sobretudo quando estamos procurando, descaradamente, novas namoradas e novas mulheres.

“Você não vai fazer uma coisa dessas com a Maria”, “a Maria dá de dez nessa vaca atrás de quem você está correndo”. Eis algumas das frases que ouvimos de nossos amigos quando nos lançamos a aventuras. Eles, como certos cães de aparência assustadora mas com alma de bebê, só atacam quando são atacados primeiro. No caso do Totó, por exemplo, fomos atacados primeiro. Toda a campanha sanguinolenta que movemos contra a namorada foi apenas uma resposta ao golpe vil que recebemos.

Mulheres e amigos são complementares, como uma boa colher de Nescau e um copo de leite gelado. Cada parte tem sua função. A presença do Nescau não diminui o leite, nem a presença do leite diminui o Nescau. É uma imagem meio capenga, admito, mas preciso considerar que fui subitamente assaltado por uma feroz vontade de tomar um copão de Nescau gelado. (Copázio, corrigiria minha mãe, que jamais conseguiu dar um português decente a este seu filho.)

E antes que meu espaço se encerre quero dizer que dedico esta coluna à minha velha turma. A melhor turma do mundo em todos os tempos. Parece que os vejo ao meu lado agora. E reparo naquele ali, baixinho, de blusão de couro e chiclete na boca, o mais esperto de todos nós. É o Edu, o Eduardinho. Vejo o Edu como o Senhor do Mundo em cima de uma pequena moto azul de 50 cilindradas que ganhou aos 18 anos, os olhos com o fulgor arregalado de quem não conhece obstáculos que não possa transpor. E o vejo depois num paletó ridículo, que ele jamais usaria. Mas fora atirado de sua moto numa guia e estava num caixão. E então me ocorre que o Edu não viveu o suficiente para assistir à falência de seus sonhos de menino, como todos os seus amigos que sobrevivemos e seguimos em frente.
E então eu penso que se essa coluna fosse musicada, tocaria agora uma balada de Hendrix chamada Angel. E me arrepio. Uma vez, lá para trás, nós, da velha turma, estávamos ouvindo Angel enquanto fumávamos um baseado no quarto do Fernão. Um trecho da música fala de alguém que voa pelos céus. O Mingo disse: não dá pra ver o Edu voando pelos céus?

A Menina do Piercing na Língua e o livro

28/09/2007

Ela me empresta um livro do qual eu tinha ouvido falar com admiração. A Menina do Piercing na Língua. O Passado, romance de amor do argentino Alan Pauls. Eu tinha acabado de ler O Homem Comum, de Philip Roth, altamente depressivo. Gosto de Roth, gosto do erotismo requintado que brota de sua prosa, mas O Homem Comum é negativo demais. Um cara de 71 anos vê seus amigos doentes, prestes a morrer ou já mortos, e ele mesmo reconhece o quanto sua vida foi patética. Mas gosto tanto de Roth que, ao contrário do que faria normalmente, fui até o fim. Fui fisgado pelo Passado imediatamente. Primeiro pela edição caprichada da Cosaqnaify, e até antes disso pelo bom gosto literário de quem me emprestou. Depois pela citação de dois pintores que reverencio, austríacos e iconoclastas os dois, quase da mesma época (final do século 19, início do 20), Schiele e Klimt. Há em Schiele e Klimt um caos colorido, erótico, perturbador. Mulheres angulosas, despidas ou quase, sem vergonha dos pêlos, modelos que quase sempre foram amantes dos dois gênios, e que por meio deles alcançaram a imortalidade. Tenho uma reprodução de O Beijo, de Klimt, em meu quarto de neo-solteiro. Acordo com ela, e gosto disso.

Um trecho de O Passado me chama a atenção. O protagonista, apaixonado, não pensa na possibilidade de dormir com nenhuma outra mulher. Jamais fez isso. Ele conta isso para ela. Ela diz: “Eu fui pra cama com o Rafael”. Palavras do autor: “Então ele soube que, para algum dia deixar de amá-la, algo mais forte que outro homem, que outra mulher, algo tão desumano e cego quanto um desastre, uma queda de avião, um terremoto, teria de arranca-la de seu lado e extirpa-la de sua alma”.

Reflito um momento. Existe amor assim tão generoso e permissivo? A traição, quase sempre, gera ódio e desejo obsessivo de vingança. Muitas vezes a pessoa finge perdoar e até se reconcilia, mas fica no fundo de sua alma um ódio que, cedo ou tarde, explode alguma forma. Não sei se existe mesmo amor tão lindo quanto o descrito por Pauls. Alguém saberá?

Os carros e nós

27/09/2007

“Para ele, a velocidade significava liberdade.” Ouvi essas palavras outro dia, mais uma vez, e como sempre elas me tocaram. Elas fazem parte de um filme chamado Corrida Contra o Destino, de mais de 30 anos, e se referem a Kowalski. Kowalski é um cara que tem que entregar o Challenger branco que dirige de um ponto a outro na imensidão americana em pouco tempo e, nessa tarefa, é tomado por uma determinação ao mesmo tempo ingênua, estranha e desesperada. A saga de Kowalski em seu Challenger, sob a perseguição policial, é narrada poeticamente por um locutor de rádio negro e cego, Supersoul. É Supersoul, na rádio, quem profere as palavras com que iniciei a coluna.

Nenhum filme explica de forma tão clara e tão comovedora a paixão masculina pelos carros. As mulheres não compreendem essa paixão. Para as que estão dispostas a entendê-la, recomendo que vejam Corrida Contra o Destino. O carro representa, para nós, ou pelo menos para muitos de nós, muito mais que um banal meio de transporte. O carro, grande ou pequeno, humilde ou luxuoso, nos dá asas. Voamos com eles rumo a nossas fantasias mais remotas e a nossos sonhos mais arrebatadores. Dentro deles alimentamos a ilusão de que nenhum obstáculo é intransponível, de que toda fuga é possível, de que por mais difíceis que as coisas estejam sempre existirá uma saída.

De alguma forma, somos todos nós réplicas de Kowalski e daí a pungência duradoura e o apelo à prova do tempo de Corrida Contra o Destino. Uma refilmagem foi feita há algum tempo, e ela vale mais pelo tributo do que pela qualidade. Uma nova banda fez, inspirada no filme, o vídeo de sua música Show Me How to Live. Foi no vídeo, entremeado de cenas de Corrida Contra o Destino, que ouvi as palavras sinteticamente soberbas de Supersoul sobre Kowalski. Foi o Pedro, outro kowalskiano, que encontrou, no computador, o vídeo e correu para me mostrar. Fechei os olhos por alguns momentos e me transportei ao Chevette vermelho de meu pai. No comando daquele Chevette, eu fui o imperador de todos os mundos.

É como se uma voz nos dissesse, desde meninos: coloque o pé no acelerador e você será invencível. Abra as janelas do carro e se deixe levar a todos os himalaias da imaginação pelo vento que invade selvagem o carro em movimento. Ponha aquela música bem alto, cante junto, e então você terá acesso ao paraíso. A vida é dura, áspera? O carro simboliza a resposta. Uma fuga sublime, ou a possibilidade iluminadora de um desafio petulante ao deus das lágrimas. É tão fácil. Basta acelerar. Uma curva adiante e onde havia névoa se abre a chance de um sol deslumbrante e libertador. Teremos conseguido fugir de tudo, até de nós mesmos.

Mais do que da polícia, Kowalski fugia exatamente de si mesmo, de seu passado, em que as ilusões foram, uma a uma, perdidas: a mulher amada, tragada pelas águas traiçoeiras do mar. A carreira de piloto de corridas, destruída num acidente. A tentativa de trabalho como policial, encerrada quando aparece um companheiro corrupto. A resposta que Kowalski encontrou foi o indomável Challenger branco, eternizado nas estradas poeirentas e desertas como o símbolo superior da liberdade viril do homem. Corrida Contra o Destino não é a história apenas de Kowalski. É a história de todos nós.

Lenira e Fabio

27/09/2007

“Você não mudou nada. Sempre com cara de criança. Sempre calado. Pensativo. Às vezes eu tinha que fazer a pergunta e a resposta para que nossas conversas não morressem.”
Fabio arregalou os olhos e encarou Lenira. Fazia cinco anos que não a via, mas parecia que estivera com ela na noite anterior. Fora a roupa, agora muito mais elegante, ela não mudara nada. Os cabelos pretos como uma noite siberiana de inverno continuavam a escorrer pelas suas costas como uma capa de super-herói.
Os óculos pretos de aro fino, antes sem marca, agora Armani, ainda lhe davam o ar ingenuamente sexy de professora. Os grossos lábios vermelhos sem batom – batom para quê? Um fêmur deslocado aos 15 anos deixara a perna direita de Lenira ligeiramente menor que a esquerda. Fabio adorava vê-la caminhar. Ninguém se movia com tanta graça, achava. O maior espetáculo da Terra. Lenira vestia um tailleur rosa de executiva. Subitamente passou pela cabeça de Fabio a idéia absurda de dizer coisas assim: “Ei, você sabe que eu prefiro você de jeans e camiseta branca, como no passado? Você ainda fica com as bochechas vermelhas depois do amor? Você pode me deixar ver, pela última vez, aquela tatuagem de golfinho na virilha direita?”

Quantos anos ela já tinha? Trinta? Não, 31. Era quatro anos mais nova que ele. Pensou na Sofia de Machado de Assis. “O tempo, como um escultor vagaroso, a ia esculpindo ao correr dos longos dias.” Uma vez, no primeiro aniversário do dia em que alugaram um apartamento e foram morar juntos, escrevera isso no cartão em que lhe dera as obras completas de Machado em três volumes. Quando o deixou, ela não as levou. Os livros de Machado jaziam desprezados numa estante do pequeno apartamento em Pinheiros. Fabio se perguntou o que Lenira teria feito do cartão. Provavelmente o jogara fora, pensou. Ela jamais guardara nada, ao contrário dele.
“Você deve ter achado estranho eu aparecer depois de tanto tempo, não é, Fabio? Telefonar e marcar um almoço exatamente nesse restaurante.”

Esse restaurante. A cantina Speranza, na Bela Vista. Freqüentavam nos bons tempos. Um restaurante charmoso e barato, bom para gente de dinheiro contado como ele ontem e hoje e para ela ontem.
“Você nunca quis ir a outros restaurantes. Sempre a Speranza, sempre a lazanha à romanesca, sempre a Coca-Cola, sempre a musse de chocolate. A primeira coisa em que eu reparei hoje foi o seu pedido. Lazanha e Coca. Se pelo menos fosse Coca light. Quase que eu falei quando o garçom anotou o pedido: e musse de sobremesa para ele. Fabio, Fabio, você nunca vai mudar?”

Fabio achou no tom de voz de Lenira alguma coisa que sugeria que ela podia estar à beira de lágrimas ou gargalhadas. Não estava preparado para lágrimas. Preferia gargalhadas. Era mais fácil enfrentá-las.

“Eu precisava dizer certas coisas. Coisas que não foram ditas.”

Fabio fez um gesto com as mãos como dizendo que não, ela não tinha que lhe dar satisfação nenhuma. Algumas palavras talvez tivessem importância num passado já remoto, não agora.

“Quando eu decidi ir embora, sabia que não conseguiria falar com você. Olhar para você e dizer adeus. Mas imaginava escrever uma carta que explicasse tudo. Aí eu peguei a caneta e… e nada. A gente pensa que certas coisas são mais fáceis de escrever do que de dizer, mas isso é uma ilusão.”

Passou rápido por Fabio a lembrança de que Lenira jamais fora, mesmo, uma boa redatora. Estudara jornalismo, mas depois se fixara no departamento comercial de uma revista.

Ela tirou os óculos e os pôs na mesa. Era um sinal, Fabio sabia, de que estava emocionada. Era como se a vista turva a ajudasse a enfrentar melhor certas situações difíceis. Fabio sentiu uma súbita e absurda vontade de pedir a ela que caminhasse pelo restaurante, para ver aquele andar inigualável e majestoso em sua leve oscilação, mas tinha noção do ridículo de tal pedido e permaneceu calado.

“Não sei quantas vezes iniciei um bilhete de explicação e rabisquei tudo. No fim desisti. O silêncio era mais digno do que uma carta vulgar de despedida, cheia de lugares-comuns e de erros de português.”

Uma amiga de Lenira lhe telefonou, um dia, para dizer que ela decidira sumir um pouco para pensar na vida. Deixara o emprego, deixara o namorado, deixara a cidade, deixara tudo. A amiga disse que ela fora viajar para ninguém sabia onde. Fabio dormira depois, algumas vezes, com essa amiga de Lenira. Aprendeu ali que o sexo pode ser sinônimo de desespero. Naqueles dias, Fabio só se sentia vivo quando estava dentro de uma mulher.

Alguns meses depois da partida de Lenira, Fabio a viu numa coluna social, mulher de um homem 20 anos mais velho que ela, Miguel. Ele era um figurão do mundo publicitário. Conquistara leões de todas as espécies em Cannes e era sócio de americanos numa grande agência. Lenira era sua segunda mulher. Pouco mais de um ano depois, leu também numa coluna social que Lenira e Miguel tiveram um filho. Quase desesperara ao sabê-la perdida.

“Quando nós fomos morar juntos, eu pensei que era para sempre, Fabio. Mas tudo mudou, depois. Você, Fabio. Você mudou, cada vez mais monomaníaco. Primeiro ouvia músicas variadas, depois só o Nirvana, depois só o Acústico do Nirvana, depois só My Girl. Deus, às vezes passo dias sem conseguir tirar essa maldita música da cabeça.” Cantarolou um trecho, desafinada como sempre. Ninguém é perfeito, pensou Fabio.

Ocorreu a ele que não poderia haver prova de amor maior do que gostar de ouvir cantar uma mulher desafinada. E ele gostava de ouvi-la. “My girl, my girl / Don’t lie to me / Tell me where did you sleep last night.”

A história da música, sabia Fabio, era a história deles dois, a história de milhares, milhões de casais, aqui, ali, em todos os lugares. A falência de um romance, a tristeza, o desamparo, a perplexidade. Sempre a mesma história. Ridículo achar que um caso de amor possa ser especial, quimera vã e despropositada de amantes pretensiosos. Ocorreu a Fabio que Lenira entrara no restaurante acusando-o de não ter mudado em nada e agora o acusava de ter mudado em tudo. O que poderia se chamar de caso sem solução.

“Depois foram os livros. Você lia tudo, me fez ler até Guerra e Paz. Demorei seis meses, mas consegui. Depois só Machado de Assis, depois só um conto, sei o nome, Um Capitão de Voluntários. Quantas vezes você leu esse conto? Cento e oitenta, 320? E ainda dizia que era um conto menor do Machado de Assis. Menor! Eu comecei a ficar com medo. Eu tinha medo de você. Ainda tenho. Você pode imaginar o que é, de repente, descobrir que o homem com quem você dorme é um desconhecido? Um… um… um lunático?”

Lenira olhou para um jovem casal numa mesa ali perto. Estavam completamente entretidos um com o outro. Por baixo da mesa ela tocava os pés dele. De tempos em tempos ele se erguia parcialmente sobre a mesa para beijá-la.

“Parece que estou vendo a gente alguns anos atrás. Acho que um relacionamento começa a terminar quando as conversas começam a terminar. Aquele casal ali. Parece que eles poderiam conversar dias, anos sem parar. Sabe do que eu mais sinto saudade? Das nossas conversas do início. Eu gostava tanto do som da sua voz dizendo meu nome.”
Lenira fez uma pequena pausa como para se lembrar de alguma conversa que tivera, no começo, com Fabio. Depois prosseguiu. “Que coisa mais absurda ter 20 anos e acreditar em palavras tolas e sem sentido como amor. Ora, o amor. Devia estar escrito assim em todos os dicionários. Amor: o mesmo que ficção. E cuidado ao usar porque machuca.”

Lenira começou a chorar baixinho. Fabio pensou em abraçá-la, confortá-la, mas viu o absurdo de confortar quem vencera o embate entre os dois, a parte vitoriosa, a mulher que o abandonara para crescer na vida. Ele era, ali naquela mesa, o derrotado. Ao fim de alguns segundos, ela já se recuperara. Os olhos verdes estavam levemente avermelhados. E só
.

“Não sei se isso tem importância, mas eu só comecei a namorar o Miguel depois que deixei você. Enquanto nós estávamos juntos, sempre fui fiel.”
Fiel. Que palavra mais ridícula, pensou Fabio. Ninguém é fiel a ninguém. As pessoas só são fiéis a si próprias. Às vezes, nem a elas mesmas. Fabio achou pelo tom de voz de Lenira que ela pronunciara a palavra fiel como se julgasse merecer uma condecoração.

“É verdade: nunca dormi com ninguém quando estávamos juntos. Eu… eu simplesmente não tinha a menor vontade.”

Era a Lenira de sempre, pensou Fabio. Usava “dormir” como sinônimo de copular. Podia ser pior, ele sabia. Lenira podia preferir “fazer amor”. Falava de Miguel como se fosse um velho conhecido de Fabio.

“Não podia terminar bem. Você parecia não gostar mais de nada, só de ler Machado de Assis e escutar o Nirvana. Eu tinha uma festa, você não ia. Queria ver um filme, você não ia. Pareço estar ouvindo o que você dizia de cinema. Cultura de preguiçoso. Quem não tem preguiça lê livro. Quem tem vê filmes. Você sempre foi tão cínico. Mesmo agora. Eu falo essas coisas todas, tão importantes para mim, tão duras que levei cinco anos para conseguir dizer, e você me olha impassível, com um sorriso pregado no canto dos lábios. Eu nunca atingi você, não é, Fabio? Me pergunto quantos dias você demorou para perceber que eu tinha ido embora.”
Fabio achou que não era o momento de falar no quanto sofrera. Não ia falar no dia em que pegara uma tesoura e, num acesso de fúria, rasgara as fotos dos dois. Como sempre, quem precisava falar era ela, não ele. Reparou que ela não tocara na comida, uma salada de salmão acompanhada de água sem gás. Tudo bem, Lenira não fora ali para comer.
“Ainda no dia anterior eu esperei alguma coisa, um gesto, um sinal que mostrasse que eu tinha alguma importância pra você. Que você me achava tão importante quanto My Girl e um Capitão de Voluntários. Mas nada. Você tinha se refugiado num mundo no qual eu não conseguia entrar.”
Fabio demorara algum tempo para entender que essa indiferença fingida era apenas uma autodefesa errada e inútil. Sabia que perderia Lenira, algum dia, para alguém mais adequado que ele. Um homem que a levasse para dançar, para viajar, que a fizesse sorrir. Alguém como Miguel. Fabio sempre olhara Lenira de cima para baixo, uma perspectiva que só poderia mesmo levar o casal ao colapso. Lenira e Miguel parecem feitos um para o outro. Dois vitoriosos, que se olhavam de igual para igual. Pareciam tão felizes, os dois, nas fotos das colunas sociais. Por saber que a perderia, Fabio construíra um mundo ao qual Lenira não pertencia. Uma tolice, sabia agora, mas a vida é exatamente isso, uma sucessão interminável de tolices. E a gente só percebe que cometeu um erro grave num relacionamento depois que já é muito tarde para corrigi-lo.
“Fabio, Fabio. Você não vai falar nada?”
Fabio pensou em falar algo, mas se calou. Não falara nada quando falar poderia ter feito alguma diferença. Agora não fazia sentido falar nada.
“Fabio, Fabio, eu …”
Fabio percebeu que Lenira estava perto de perder o controle. Mas nunca houve nada que ele pudesse fazer a esse respeito.
“Eu te detesto, te detesto, te detesto. Você arruinou minha vida. Você me tornou uma mulher amarga, uma mulher que não consegue sonhar.”
Ele pensava que Miguel e ela fossem felizes. Era o que parecia nas colunas sociais.
“Você dizia que gente que não leu Sthendal não sabe nada da vida. Sthendal, não é isso? Não me lembro de ter passado uma noite só com você sem que você acendesse o abajur para ler um livro e …”
Lenira fez uma pausa breve, para recuperar ao mesmo tempo o fôlego e a raiva.
“… não consegui deixar de reparar que o Miguel nunca lia um livro antes de dormir. Mas ele é bom de sexo, entendeu? Muito bom, Fabio. Fabio, Fabio, eu te detesto.”
Ela foi subindo o tom de voz. Naquela altura todo o restaurante sabia que ela o detestava, e que Miguel era bom de cama.
Lenira levantou-se subitamente e foi embora. Fabio ficou na mesa. Admirou, uma última vez, o olhar torto e sublime de Lenira.
Depois olhou para o casalzinho que estava na mesma mesa em que eles gostavam de se acomodar.
Estavam tão apaixonados.
Teve pena dos dois.

Os amigos

24/09/2007

E então uma canção me faz pensar nos amigos. Está na Antologia dos Beatles. Chama-se “Yes, It is”. A versão que me emociona é uma sublimemente tosca. John Lennon ainda não tem a letra pronta: enrola algumas frases. Na primeira parte ali estão ele, seu gênio e seu violão, nada mais. (Você devia parar de ler esse texto já e ouvir a música de que falo.) Na segunda parte entram os amigos, Paul, George e Ringo, com suas vozes de apoio e seus instrumentos. A primeira vez que ouvi essa versão de “Yes, It is” tive vontade de chorar. Porque ali, naquela melodia ingenuamente romântica, tão típica dos Beatles jovens, está representada a força descomunal da amizade. Sozinho, Lennon parece clamar por uma mão dos amigos. Ela vem e se instala então um som coletivo que deslumbra. A amizade tudo pode. A amizade é maior que tudo. Maior que a vida e maior que a morte. Montaigne. Acho que foi Montaigne que escreveu que uma amizade é como a união de dois tecidos tão bem feita que você sequer nota a costura. Montaigne sofreu barbaramente quando morreu seu melhor amigo. Registrou isso em seus clássicos Ensaios. (Atenção: atribuí a frase acima a Montaigne, mas posso estar enganado. Sempre posso estar enganado. É um direito de escritores baratos como eu.)

O amigo nos levanta. O amigo nos suporta. O amigo nos conforta quando temos uma decepção amorosa ou profissional. O amigo sabe falar e, mais que tudo, sabe ouvir. O amigo traz alento quando tudo parece tão sem graça e tão sem sentido. O amigo não compete conosco. O amigo ganha em nossas vitórias e perde em nossas derrotas. Um cínico inspirado certa vez disse que não há amigo que secretamente não se alegre quando algo de ruim nos acontece. Reconheço aí uma frase inventiva e de efeito, mas nada além disso. O amigo é a negação da sentença do cínico inspirado. Sem amizade a vida seria simplesmente insuportável.

Deus deveria ser proibido de nos tirá-los. Os nossos amigos deveriam estar protegidos de todos os males. Deveriam viver felizes para sempre. Ouso dizer que não deveriam sequer envelhecer. Um amigo perdido é uma dor que lateja eternamente. Penso agora no Marcão. Não tinha nem vinte. Inteligente, sensível, meigo. Ruivo e cheio de sardas. Tinha sido namorado da Laura, uma morena esplêndida. Marcão. Sabia enrolar bagana com grande categoria. Um dia avisaram: ele apontou um revólver para a cabeça e disparou. (E então me ocorre uma outra canção do Lennon, já da fase adulta. “Hapiness is A Warm Gun”. Felicidade é uma arma quente.)

Para o Marcão, não sei se a arma quente foi a felicidade. Foi a retirada, com certeza. E ele não tinha nem vinte. Durante muito tempos nós, os amigos, nos perguntamos tolamente por quê. Ainda hoje, anos depois, de vez em quando falamos dele. Marcão. Sua memória esgarçada nos traz sorrisos tristes e questões antigas para as quais não haverá jamais resposta. Marcão de alguma forma viveu nos amigos que o amaram, entre os quais um certo escritor barato. Por nossos olhos cansados e envelhecidos ele pode ver a miserável beleza de cada passo da longa caminhada sobre essa terra.

Os amigos

24/09/2007

E então uma canção me faz pensar nos amigos. Está na Antologia dos Beatles. Chama-se “Yes, It is”. A versão que me emociona é uma sublimemente tosca. John Lennon ainda não tem a letra pronta: enrola algumas frases. Na primeira parte ali estão ele, seu gênio e seu violão, nada mais. (Você devia parar de ler esse texto já e ouvir a música de que falo.) Na segunda parte entram os amigos, Paul, George e Ringo, com suas vozes de apoio e seus instrumentos. A primeira vez que ouvi essa versão de “Yes, It is” tive vontade de chorar. Porque ali, naquela melodia ingenuamente romântica, tão típica dos Beatles jovens, está representada a força descomunal da amizade. Sozinho, Lennon parece clamar por uma mão dos amigos. Ela vem e se instala então um som coletivo que deslumbra. A amizade tudo pode. A amizade é maior que tudo. Maior que a vida e maior que a morte. Montaigne. Acho que foi Montaigne que escreveu que uma amizade é como a união de dois tecidos tão bem feita que você sequer nota a costura. Montaigne sofreu barbaramente quando morreu seu melhor amigo. Registrou isso em seus clássicos Ensaios. (Atenção: atribuí a frase acima a Montaigne, mas posso estar enganado. Sempre posso estar enganado. É um direito de escritores baratos como eu.)

O amigo nos levanta. O amigo nos suporta. O amigo nos conforta quando temos uma decepção amorosa ou profissional. O amigo sabe falar e, mais que tudo, sabe ouvir. O amigo traz alento quando tudo parece tão sem graça e tão sem sentido. O amigo não compete conosco. O amigo ganha em nossas vitórias e perde em nossas derrotas. Um cínico inspirado certa vez disse que não há amigo que secretamente não se alegre quando algo de ruim nos acontece. Reconheço aí uma frase inventiva e de efeito, mas nada além disso. O amigo é a negação da sentença do cínico inspirado. Sem amizade a vida seria simplesmente insuportável.

Deus deveria ser proibido de nos tirá-los. Os nossos amigos deveriam estar protegidos de todos os males. Deveriam viver felizes para sempre. Ouso dizer que não deveriam sequer envelhecer. Um amigo perdido é uma dor que lateja eternamente. Penso agora no Marcão. Não tinha nem vinte. Inteligente, sensível, meigo. Ruivo e cheio de sardas. Tinha sido namorado da Laura, uma morena esplêndida. Marcão. Sabia enrolar bagana com grande categoria. Um dia avisaram: ele apontou um revólver para a cabeça e disparou. (E então me ocorre uma outra canção do Lennon, já da fase adulta. “Hapiness is A Warm Gun”. Felicidade é uma arma quente.)

Para o Marcão, não sei se a arma quente foi a felicidade. Foi a retirada, com certeza. E ele não tinha nem vinte. Durante muito tempos nós, os amigos, nos perguntamos tolamente por quê. Ainda hoje, anos depois, de vez em quando falamos dele. Marcão. Sua memória esgarçada nos traz sorrisos tristes e questões antigas para as quais não haverá jamais resposta. Marcão de alguma forma viveu nos amigos que o amaram, entre os quais um certo escritor barato. Por nossos olhos cansados e envelhecidos ele pode ver a miserável beleza de cada passo da longa caminhada sobre essa terra.

Conte com você mesmo

20/09/2007

Uma cena de Beleza Americana me impressionou particularmente. O filme todo me fascinou, aliás. Tenho que vê-lo de novo. Acho sublime, comovedora aquela busca desesperada e vã do homem pela juventude perdida. Mandar para o lixo a carreira bem-comportada depois de uma conversa franca com o chefe dilbertiano e ir trabalhar numa lanchonete, sem metas e cobranças que fossem além de entregar com um sorriso o hambúrguer para o freguês. Comprar um carrão imprestavelmente lindo de 20 anos atrás apenas para realizar um sonho que ficara lá longe num mundo que se perdera. E correr atrás de uma garota como se fosse, ele próprio, um garoto, e não um homem vencido pelo correr dos dias. Braços remando contra a correnteza, como escreveu Fitzgerald no final de Gatsby.

Somos condenados a remar contra a correnteza, e só não encerro esta digressão aqui porque me ocorre uma frase cortante como a espada de Musachi, o maior dos samurais: o tempo nos tira as certezas que temos na juventude e, ao perdê-las, vai com elas uma ousadia petulante que é maravilhosa por ser ingênua. E essa é a maior das maldades do tempo, ainda que as certezas fossem, todas elas, erradas.

Mas era sobre a cena da primeira sentença que eu queria falar. A mãe frustrada, que imagina encontrar a resposta para um casamento miserável nos braços de um amante rico e engomado, diz para a filha depois de uma briga conjugal que terminou com pratos lançados na parede: “Você aprendeu a maior de todas as lições. Você aprendeu que tem que contar apenas com você mesma”. Sócrates não teria falado nada melhor. Talvez Sêneca, mas mesmo assim não tenho certeza.

Temos que contar com nós mesmos e, no entanto, quase sempre depositamos nossa felicidade (ou nossa infelicidade) nos outros. Ninguém pode nos ajudar se nós próprios não nos ajudamos. Ninguém mesmo: nem a mãe, o pai, o amigo, o irmão, a namorada ou a mulher. Ninguém. Vivemos num mundo em que a solidão é tratada como um anátema, um estigma, um mal a evitar. Um grande homem da Roma Antiga disse que jamais estava menos só do que quando estava só, entregue às reflexões. E no entanto poucas coisas nos enchem de tamanho horror quanto a solidão. É porque não contamos com nós mesmos. E assim – e lá vou eu para mais uma de minhas citações favoritas – estamos sempre fugindo de nós mesmos. Lucrécio, a quem possa interessar.

A única coisa que temos sob nosso controle somos nós. É com você mesmo que você deve contar. Não pode haver mais sólido refúgio do que esse contra as adversidades e incertezas da vida. Foi isso que, naquela cena de Beleza Americana, a mãe disse à filha. Era uma mulher histérica, descontrolada, falsa. Mas, repito, nem Sócrates poderia ter dito uma coisa mais sábia à garota arrasada.

O fastio pós-coito

20/09/2007

Ouvi de minha amiga Consuelo uma queixa que me pareceu incongruente: “Lembra do Carlos? Dispensei. Ele era insuportavelmente grosseiro depois do orgasmo”. “Como assim?”, perguntei. “Vocês homens tornam-se incivilizados depois que conseguem seu orgasmo. Sobem na árvore, grunhindo para si mesmos, incapazes de dividir. “Dividir. Quantas vezes já ouvi esta palavra sair em estocadas da boca de uma mulher. Di-vi-dir. Em suma, o pobre Carlos, o fiel e dedicado Carlos, depois do orgasmo, quis assistir futebol. Nem um beijo, nem uma palavra de amor. Apenas o som frio e oco do controle remoto. Adeus, Carlos, você não quis di-vi-dir o “depois” do orgasmo.

Consuelo não é exatamente uma feminista, e a queixa, embora intelectualizada, me pareceu cheia de razão. É verdade, depois do sexo somos incivilizados: sofremos de fastio. Todos nós, homens, sofremos do fastio pós-coito. Mas por alguma razão sempre à espreita, talvez o terror antimachismo ou a política de boa vizinhança, temos de fingir que não. Disse firme para Consuelo: “Já não bastam as preliminares extensíssimas que vocês nos exigem, querem agora que fiquemos depois fazendo onda também…” Não sei se foi a palavra onda, mas o fato é que ouvi de Consuelo a seguinte frase: “Você é narcisista e egocêntrico”.

As mulheres são mesmo assim, sinceras. Nós é que somos os eternos mentirosos. E pagamos por isso. Mentimos (ou ao menos omitimos) que queremos ficar ao lado delas depois de totalmente saciados, quando, na verdade, queremos ligar a TV e ver os gols da rodada ou ir à cozinha comer um pedaço de pizza fria. Talvez seja hora de falarmos com a franqueza peculiar ao sexo frágil. Elas nos pedem que compreendamos seu tempo sexual. Nós compreendemos. Elas nos pedem que olhemos seu interior. Nós olhamos. Elas nos pedem que dividamos com elas a preocupação com a gravidez. Nós dividimos. Quero viver meu fastio pós-coito, meu pessoal e intransferível pós-coito, em paz. É meu singelo pedido.

Para nós, homens, parece nonsense o bailado feminino depois da cópula. Não entendemos como elas conseguem permanecer passarinhando ao nosso redor, esfregando seus pezinhos frios na nossa canela e beijando nossa orelha, se não há nenhum motivo gritante para isso. Já não cumprimos nossa missão, passo a passo – caprichamos nas preliminares, olhamos por dentro delas, usamos devidamente a camisinha contra gravidez e doenças? Elas já não estão coradas e felizes? Que mais esperam de nós, depois de tamanha explosão de energia? Não entendo. Há entre um orgasmo e outro um breve momento de indiferença gloriosa. É breve, mas existe. Depois do sexo, estamos fartos, cheios até a boca, boiando no torpor de nossos egos inflados e hormônios sedados, orgulhosos de nós mesmos e completamente indiferentes a ela – ou a tudo. Olhei para Consuelo e pedi: “Clemência! É que, depois do sexo, não precisamos de mais nada”. Consuelo fuzilou-me: “Vocês só nos dizem coisas doces para nos usar. Depois do prazer, não servimos nem para conversar”.

E isso não é ótimo? É como nos sentimos também – usados -, só que não julgamos isso negativo. Consuelo me cansa com a mania persecutória comum a todas as mulheres deste século. Pago por todos os homens opressores da história da humanidade – e quem sou eu? Um oprimido, um homem que não pode viver seu fastio pós-coito sem sustos, porque sabe que um quarto de hora mais tarde estará de novo no alto da montanha-russa da testosterona, prestes a implorar de joelhos que a amada o encha de beijos e ouça as perversões que guardou para ela. Quem é o usado aqui?

Calei-me. Não disse a Consuelo uma imagem que Toni, um amigo em comum, me deu certa vez sobre o momento depois do orgasmo. “Sabe”, ele me disse, “quando você encosta os dois pés na beirada da piscina para dar impulso e ganhar distância? Tenho vontade de fazer isso… na cama”. Ele não disse na cama, ele disse o nome da namorada dele. E completou: “Com todo respeito”. Toni ansiava por ganhar espaço, solidão, estar só com sua total – e fugaz – alforria do desejo. Sexo é prisão. Doce prisão. Se há alguém escravo numa relação de sexo, somos nós, os homens. O desejo nos acorrenta às mulheres; o momento pós-coito nos liberta. Nos sentimos livres, por alguns momentos, daquela angústia permanente que é nosso desejo ancestral de copular com todas as mulheres do mundo, distribuir nossos espermatozóides e proliferar nossas sementes sobre a terra.

É uma centelha de paz justa, merecida, neste universo tão caótico. E não há razão nenhuma para que sintamos culpa pelo fastio diante da nudez irada e tagarela da mulher que acabamos de satisfazer sexualmente e agora insiste numa conversa sem sentido.

Beijo a chuva

14/09/2007

Beije a chuva. Ouço uma canção linda e então penso em você, e beijo a chuva. Billie Meyers. Cantora. Ela não cantou nenhuma outra música tão pungente, mas esta bastou. Há artistas assim: têm um grande momento, um instante sublime de inspiração, um repente de gênio, e é o suficiente. Eles não têm quantidade, eles não têm consistência, eles não têm freqüência. Mas tiveram um lampejo fulgante, e por isso mesmo perene. É o bastante.

Acabo de ouvir no Itunes Kiss the Rain. Não uma, não duas, mas seis ou sete vezes. Sou um obsessivo musical, já disse. Hello, can you hear me, pergunta a cantora. Oi, está me ouvindo? Claro que a pessoa para quem ela se dirige não está. Assim como você não está lendo o que estou escrevendo. Há uma tempestade onde o autor está, diz a letra. Mas acho que a tempestade está mesmo é na alma do compositor. Como na minha, talvez você dissesse se estivesse me lendo. Minha alma é uma tempestade perene, não é? Eu já disse uma vez. Um estudioso, que não sei bem por que me concedeu o duvidoso privilégio de debruçar sua pretensa erudição sobre minha prosa de escritor barato, me classificou como pop, urbano – e sobretudo depressivo e melancólico.

E eu que me julgava tão divertido como os roteiros de Friends. Lol. Laughing out loud. Rindo. É assim que escrevemos nos chats de pôquer online quando alguém tem uma boa tirada. Lol. Eu divertido. Uma piada. Lol.

Mas eu falava na tempestade da canção. O refrão de Meyers. Os refrões perdidos da felicidade, como escreveu Proust, uma frase que usei outro dia como título de um texto. Gosto de Proust. Proust disse que só os anos de depressão o fizeram ser o que é, um gigante eterno das letras. A alegria não produz grade arte. Só a dor. Proust seria um bobo alegre se não sofresse como sofreu.

Volto ao Itunes para ouvir a música ainda uma vez. Kiss the rain whenever you need me, canta, num lamento poético lindo, Meyers. Beije a chuva quando sentir minha falta. Beije a chuva. Meu pai gostava de chuva. Lembro bem. Ele beijava a chuva.

Você. Você por acaso sente minha falta? Não, com certeza não. E eu compreendo e apóio você. Um escritor depressivo e melancólico. E barato. Quem pode suportar tanta coisa reunida num só Fabio Hernandez. Eu só melhorava depois de dois gins tônicas, não é? Eu sempre estive dois gins tônica abaixo do ideal.

Mas eu. Eu. Olho para fora, e não há sinal de chuva. Uma noite quente e seca de primavera antecipada. Mas chove. Dentro de mim há uma chuva que não cessa, e não sei por que eu abençôo cada gota dessa chuva que me inunda e pode me afogar.

Não faz mal. Nevermind. Adoro o título do disco do Nirvana. Não importa. , e é isso apenas que me importa.

Os beijos e o celular

12/09/2007

Eu confesso. Uma vez escrevi um conto na revista Vip com outro nome: Maurice Bendrix. Bendrix é personagem do meu romance preferido entre todos, Fim de Caso, de meu escritor também preferido entre todos, Graham Greene. (O livro foi transformado em filme por um famoso diretor cujo nome não me lembro. Lembro apenas que fez The Crying Game. Também esqueci o título em português do filme. Mas em compensação sei bem a letra inteira da música que deu nome ao filme. Ela fala tão suavemente, tão tristemente, tão lindamente de amor. “First there are kisses, then there are sighs, and then before you know where you are, youre saying goodbye”.Primeiro os beijos, então suspiros, e logo o adeus. Detesto minhas digressões, mas não consigo me livrar delas. É como se estivesse num carro desgovernado. Bem, fim da digressão.)

O pseudônimo foi meu tributo sincero, mesmo que barato, a Greene. No conto se fala de um casal prestes a se desintegrar. Uma última, desesperada e afinal vã tentativa de acertar as coisas é feita numa viagem a Portugal. Os dois vão certa noite ao cassino de Estoril e um deles – francamente já não me lembro qual, e bem pode ser nenhum deles, e sim o narrador – reflete que a única esperança para ambos é que a bola que girava na roleta jamais parasse, jamais parasse, jamais parasse. (Nas vezes em que fui a Portugal, sempre deixei algum dinheiro em Estoril. Na última, vi numa mesa de roleta José Saramago, o brilhante e chatíssimo Nobel de Literatura, ou pode ser que fosse um sósia.)

Uma bola de roleta que se paralisa: falei do conto apenas porque queria divagar, sonhar com a possibilidade de congelar um romance no seu melhor momento. Na véspera da queda, algumas vezes abrupta, outras mais suave, quase todas com a peculiaridade de só serem notadas depois de já terem percorrido um bom trecho. Olho para trás e penso em Constanza, meu primeiro amor. Eu queria ter parado todos os relógios do mundo quando dei nela, numa festa, o primeiro beijo. Ou melhor: os relógios parariam segundos antes, quando me dei conta de que ela queria que eu a beijasse. Poucas vezes, em toda a minha vida, experimentei um gosto tão intenso, tão duradouro de triunfo como quando percebi que os lábios de Constanza estavam ao alcance do adolescente desajeitado de olhos sonhadores que deixei para trás. (Tenho que admitir que em outras ocasiões eu congelaria o tempo em situações bem menos ingênuas. Ah, Nadja, que saudade!)

Meu ponto é que na correria desenfreada da vida moderna a gente não encontra tempo para congelar (e depois saborear lentamente como uma sobremesa de ovos nevados) os grandes momentos românticos que acabamos de ter. Você nem bem termina um beijo e já está pensando no trabalho, na carreira, na multidão de compromissos. (Isso quando o celular não interrompe o encontro das línguas.) A vida moderna é cruel como um cossaco russo para o romance. Maravilhosas passagens da vida romântica acabam nos escorrendo pelas mãos no ritmo frenético da internet sem que, muitas vezes, sequer percebamos como foram boas.

Perdemos a capacidade de parar e não fazer nada senão sonhar com coisas singelas, como um beijo bem dado. Temos que ir para a frente, estar sempre em movimentos, celulares ligados ininterruptamente. Quando sinto que minhas atitudes estão se enquadrando exatamente na descrição infernal acima, ponho para tocar uma canção que fala no prazer inerte de ver os pneus rolarem, e rolarem, e rolarem, e não fazer nada além disso. E então me sento numa calçada e apenas observo, em preguiçosa e muda contemplação, o movimento circular e reconfortante dos pneus que giram pela rua.

Momento imortal

06/09/2007

E então me ocorre que toda história de amor tem um momento imortal. É aquela cena, aquele instantâneo de que nos lembramos até o último dia. Fechamos os olhos e lá está a cena, clara como uma fotografia. Sei lá. Imagino que seja o apogeu da história, aquele ponto até o qual tudo parece que dá certo e depois do qual as coisas começam a se complicar. Quando os dois se olham e riem sem saber exatamente por quê. Todo romance tem sua imagem definitiva. No fundo é isso que estou dizendo. Penso agora nas minhas histórias de amor. E cada uma delas tem uma imagem que a encerra e a resume. Convido você ao mesmo exercício sentimental. Pode ser um sorvete num parque. Pode ser um jantar à luz de velas. Pode ser uma caminhada com os cachorros. Pode ser uma declaração de amor inesperada. Ou um sorriso súbito que iluminou um dia triste. Pode ser algo que foi dito ou algo que foi justamente silenciado. O beijo da reconciliação. Pode ser tanta coisa. Você vê esse momento como se apertasse o botão de pausa num filme. É engraçado. Quase nunca a imagem imortal está associada a sexo. O sexo é rude demais, primitivo demais para merecer lugar nas memórias românticas. Quando o inverno chega na vida, quando você reflete sobre as coisas e não enxerga sentido em quase nada, são essas imagens que produzem calor e alento. Elas são únicas e elas são preciosas.

E então me vem à cabeça minha pequena coleção. Vejo Constanza, meu primeiro e distante amor. Ela está numa festa. Tem dezesseis anos. Uma blusa amarela sob um vestidinho azul. Eu só tinha olhos para ela, como naquela canção americana tão linda. Ali, rainha entre tantas garotas que se chacoalhavam, olhos verdes que ofuscavam a iluminação poderosa do salão, ali está Constanza, mais bela e mais enfeitiçadora para mim que todas as Helenas de Tróia, da Grécia e de todas as Ásias maiores ou menores. Dou pausa e congelo a cena. Aquele foi o momento imortal de nossa história de amor. A força descomunal do instante mágico de um amor oblitera tudo que de ruir pode ter havido. Ouso dizer que este instante é mais forte que a morte. Estou vendo agora Constanza. Perdi Constanza porque tinha medo de perdê-la. “Meu maior medo é ter medo”, escreveu Montaigne. Afastei-a de mim porque me atormentava a idéia de que ela acabaria por se afastar de mim. O medo me venceu. O medo venceu a nós dois como uma possibilidade de casal.

Constanza foi minha passagem para a vida adulta, como acontece para a maior parte dos homens em seu primeiro amor. A separação me trouxe a experiência inédita e dolorosa de lágrimas amorosas. O cinismo da vida como homem feito se incumbiu de secá-las. Nunca mais a encontrei. Tive durante algum tempo notícias esparsas dela: casamento, um filho e depois uma filha. Algumas vezes pensei em procurá-la para lembrar bons momentos que compartilhamos, mas sempre desisti. Esse tipo de reencontro não funciona: cada qual vê no outro apenas o fantasma de um tempo que foi. No entanto sua imagem sublime naquela festa estará sempre viva em mim. Em mais uma de minhas tolices de escritor barato penso como seria se aquela festa jamais tivesse acabado, jamais tivesse acabado, jamais tivesse acabado.

SÉTIMO ANDAR

03/09/2007

Um quadro de Paula Rego

 

FOI QUANDO TOCOU no rádio aquela música que ele percebeu, enfim, que tudo acabara. Era a música triste de um filme que tratava de andróides e de caçadores de andróides. Não mudei tanto, refletiu ele. Continuo a torcer pelos andróides contra os caçadores. Já não era capaz de se emocionar com aquela velha máxima de que um dia os expropriadores seriam expropriados, mas não mudara tanto assim. O breve devaneio foi logo engolfado por uma onda de melancolia. A música ia tocando e a sensação de que perdera a moça de olhos verdes adquiriu a força de uma dor física. Quantas noites não tinham sido embaladas por aquela melodia tristonha, quantos gemidos não se tinham confundido com o solo de saxofone, quantos sonhos não tinham sido esculpidos?

Nada parecia poder separá-los, mas haviam-se separado tão facilmente.

Uma conversa, algumas lágrimas, uma porta que se fechava, o fim. Ele apanhou o elevador no sétimo andar. Desceu e não subiu mais. Lembrava cada detalhe do apartamento dela: o quadro esquisito na parede, as pilhas de revistas, a geladeira sempre abastecida de Coca-Cola, o controle remoto com que nunca conseguira controlar a televisão. Como você é desajeitado, ela dizia, tão linda e tão nua, os dedos percorrendo o corpo dele e fazendo-o sentir que a felicidade não estava tão distante assim. Não, decidiu ele, ninguém mais poderia chamá-lo de desajeitado.

Imaginou aqueles dedos percorrendo outro corpo, mas logo afastou a visão. Não porque sofresse, mas por achar tudo irreal demais. Ela lhe contou, algum tempo depois, de seu novo namorado. Era carinhoso, era compreensivo e estava apaixonado. Moravam praticamente juntos e pensavam em casar-se. Não era nenhum contos de fadas, disse ela, mas, pensando bem, não existe nada mais antiquado nestes tempos digitais do que contos de fadas. E o namorado era bonito, mais bonito que qualquer um dos antecessores. Não estava apaixonada, mas paixão tumultua a vida e ela agora desejava a paz. Que mais ela poderia querer? Durante a conversa, notou que os olhos verdes pareciam brilhar ainda mais, dois faróis esverdeados desafiando as brumas do passado. Talvez estivessem úmidos, mas era mais provável que a umidade estivesse, na verdade, nos olhos dele.

Relembraram cenas. Os beijos bêbados de gin tônica que trocaram naquela primeira noite, as brincadeiras num hotel de campo, a loucura cometida no escritório naquele final de tarde insano dele . Quem levantou a saia dele foi ele ou foi ela mesma? Foi a única vez em que se amaram de pé, e falavam baixo como se estivessem diante de um confessionário, e aqueles breves minutos pareceram a eternidade. Todas aquelas cenas relembradas deram a ele, por um momento, a ilusão de que nada acabara, ele continuaria a apertar o botão do sétimo andar e subir. Mas aí a música dos andróides tocou e ele soube que a perdera.