Archive for Fevereiro, 2008

O amor e o berro

28/02/2008

Um poeta português disse que as cartas de amor são ridículas. Mas mais ridículo ainda é não escrever cartas de amor. Tenho um acréscimo à voz do poeta: algumas cartas de amor ultrapassam os limites do ridículo. São pomposas, verborrágicas, exageradas. A grande carta de amor é necessariamente simples e objetiva. Assim como a grande declaração de amor. A simplicidade é bela ao falar e ao escrever. Uma pessoa afetada na forma de se comunicar com as demais é afetada em outras esferas. “A verdade tem que falar uma linguagem simples, sem artifícios”, escreveu um filósofo. O amor também. Isto é, se for verdadeiro.

As virtudes da economia ao se expressar têm notáveis exemplos históricos. Conta-se que os embaixadores de uma cidade grega tentavam convencer o rei de Esparta a aderir a uma esforço de guerra. O espartano deixou-os falar longamente. Depois disse: “Não lembro do começo nem do meio da argumentação de vocês. Quanto à conclusão, simplesmente não me interessa”. Num outro caso, dois arquitetos atenienses disputavam a honra de construir um grande edifício. A platéia à qual cabia a escolha ouviu um extenso discurso do primeiro arquiteto. As pessoas já se inclinavam por ele quando o segundo disse apenas: “Senhores atenienses, o que este acaba de dizer eu vou fazer”. Para Sêneca, “nos grandes arroubos da eloqüência há mais ruído que sentido”.

Os espartanos serão eternamente reverenciados pela simplicidade com que viviam e se expressavam. Uma vez perguntaram a uma autoridade de Esparta por que os espartanos não colocavam por escrito as regras da valentia para que os jovens pudessem lê-las. A resposta foi que os espartanos queriam acostumar seus jovens aos feitos e não às palavras. “O mundo é apenas tagarelice e nunca vi homem que não dissesse antes mais do que menos do que devia”, escreveu Montaigne. (Realmente sinto que estou exagerando nas citações. Deus, pareço um almanaque. Mas olho para trás e tento cortar algumas citações, e não consigo, não por mérito meu, mas dos donos das frases. Dá para deletar a seguinte reflexão de Plutarco? Disse ele: “A palavra expõe-nos, como nos ensina o divino Platão, aos mais pesados castigos que deuses e homens podem infligir. Mas o silêncio jamais tem contas a dar. Não só não causa sede como confere um traço de nobreza”.)

Também no amor, há mais “ruído que sentido” nas frases espalhafatosas ditas ou escritas. A mais genuína, a mais poderosa declaração de amor é, muitas vezes, o olhar silencioso, o gesto mudo, e, no entanto, estamos quase sempre inclinados a berrar nossa paixão. Na cama, sobretudo, trava-se muitas vezes uma competição para ver quem gritar mais alto, um torneio de gemidos geralmente insinceros e ensurdecedores que cada parceiro acredita, numa mistura de ignorância e ingenuidade, serem excitantes. O berro amoroso incomoda o ouvido e dificilmente chega ao coração. E provoca não orgasmos maravilhosos, não maratonas sexuais inacreditáveis, mas simplesmente sede.

O amor e o berro

28/02/2008

Um poeta português disse que as cartas de amor são ridículas. Mas mais ridículo ainda é não escrever cartas de amor. Tenho um acréscimo à voz do poeta: algumas cartas de amor ultrapassam os limites do ridículo. São pomposas, verborrágicas, exageradas. A grande carta de amor é necessariamente simples e objetiva. Assim como a grande declaração de amor. A simplicidade é bela ao falar e ao escrever. Uma pessoa afetada na forma de se comunicar com as demais é afetada em outras esferas. “A verdade tem que falar uma linguagem simples, sem artifícios”, escreveu um filósofo. O amor também. Isto é, se for verdadeiro.

As virtudes da economia ao se expressar têm notáveis exemplos históricos. Conta-se que os embaixadores de uma cidade grega tentavam convencer o rei de Esparta a aderir a uma esforço de guerra. O espartano deixou-os falar longamente. Depois disse: “Não lembro do começo nem do meio da argumentação de vocês. Quanto à conclusão, simplesmente não me interessa”. Num outro caso, dois arquitetos atenienses disputavam a honra de construir um grande edifício. A platéia à qual cabia a escolha ouviu um extenso discurso do primeiro arquiteto. As pessoas já se inclinavam por ele quando o segundo disse apenas: “Senhores atenienses, o que este acaba de dizer eu vou fazer”. Para Sêneca, “nos grandes arroubos da eloqüência há mais ruído que sentido”.

Os espartanos serão eternamente reverenciados pela simplicidade com que viviam e se expressavam. Uma vez perguntaram a uma autoridade de Esparta por que os espartanos não colocavam por escrito as regras da valentia para que os jovens pudessem lê-las. A resposta foi que os espartanos queriam acostumar seus jovens aos feitos e não às palavras. “O mundo é apenas tagarelice e nunca vi homem que não dissesse antes mais do que menos do que devia”, escreveu Montaigne. (Realmente sinto que estou exagerando nas citações. Deus, pareço um almanaque. Mas olho para trás e tento cortar algumas citações, e não consigo, não por mérito meu, mas dos donos das frases. Dá para deletar a seguinte reflexão de Plutarco? Disse ele: “A palavra expõe-nos, como nos ensina o divino Platão, aos mais pesados castigos que deuses e homens podem infligir. Mas o silêncio jamais tem contas a dar. Não só não causa sede como confere um traço de nobreza”.)

Também no amor, há mais “ruído que sentido” nas frases espalhafatosas ditas ou escritas. A mais genuína, a mais poderosa declaração de amor é, muitas vezes, o olhar silencioso, o gesto mudo, e, no entanto, estamos quase sempre inclinados a berrar nossa paixão. Na cama, sobretudo, trava-se muitas vezes uma competição para ver quem gritar mais alto, um torneio de gemidos geralmente insinceros e ensurdecedores que cada parceiro acredita, numa mistura de ignorância e ingenuidade, serem excitantes. O berro amoroso incomoda o ouvido e dificilmente chega ao coração. E provoca não orgasmos maravilhosos, não maratonas sexuais inacreditáveis, mas simplesmente sede.

Metade das coisas que escrevo não tem sentido

24/02/2008

“Bobagem o que o Fabio escreveu”, disse ela.
“Ele escreve muitas bobagens”, ele disse. “Mas a qual você se refere?”
“Aquela história de que só a dor produz a grande arte. E que a alegria produz bobos alegres.”
Ele riu. “Olha. O Fabio. Ele erra muito, mas aí ele acertou. Acertou no pleno.”
“Acertou no pleno?”
“Você nunca foi a um cassino?”, ele perguntou. “Acertar no pleno é acertar em cheio o número na roleta.”
“O jogo do Fabio é Texas Hold’em, não roleta”, ela disse.
“Então ele ganhou no all in”, ele disse. “O Fabio está certo quando diz que só a dor produz grande arte.”
“Você e ele. Vocês são dois pessimistas.”
“Não me compare a ele, por favor. Ele é um escritor barato. Eu sou sério. Um romancista publicado em vários países. Sofri demais para escrever os romances que escrevi. E além disso, segundo você mesma disse, sou um amante muito superior. Ou você estava mentindo para me agradar?”
“Sim, sim. Quer dizer, não, não. Não estava mentindo para agradar você. Sim, sim, vocês não se comparam. Entendeu?”
“Sim, sim. Ou não, não?”
“Bobo. Sobre a dor e a arte. Ele exagerou. Errou. O Lennon, por exemplo. O Lennon celebrou o amor e a vida”, ela disse.
“O Lennon? Ele era um atormentado. Ele era a prova de que só a dor produz arte. O Lennon. Ele nunca superou a perda da mãe. Ele dizia que tinha perdido a mãe duas vezes.”
“Não concordo. Ele escreveu All You Need is Love. Tudo que a gente precisa é amor. Amor, não sofrimento”, ela disse.
“A mãe. Ele disse que perdeu a mãe duas vezes. A primeira vez quando ela entregou o bebê para a irmã dela porque achava que não tinha como criar. A segunda quando ela retornou para ele. Ele tinha dezesseis, e ela morreu logo depois atropelada. Mother. É uma das interpretações mais desesperadas do rock. Tão pungente quanto Sid Vicious cantando My Way, ou Kurt Cobain cantando Where Did You Sleep Last Night.”
“Mas ele foi guiado pelo amor, não pela dor”, ela disse. “A música que ele escreveu para a mãe no Album Branco. É uma canção doce, uma canção de amor.”
“De amor? É uma canção de dor. Lembra o primeiro verso? Half of what I say is meaningless/But I say it just to reach you. Metade das coisas que digo não têm sentido, mas falo delas apenas para tentar alcançar você. A vida toda ele quis uma coisa, a mãe. E não teve. Não alcançou, para usar o verso dele mesmo.”
“Mas ele teve a Yoko”, ela disse. “O amor no fim triunfou.”
“A Yoko. A Yoko foi uma tentativa patética de encontrar a mãe. Aquela foto da Annie Leibowitz na capa da Rolling Stone. Ele em posição fetal do lado da Yoko. Deus, o John sempre procurou a mãe perdida, duas vezes perdida.”
“Half of what I say is meaningless/But I say it Just to reach you”, ela cantarolou em sua voz doce.
“Podia ter sido escrita para o Fabio”, ele disse. “Metade das coisas que ele escreve não tem sentido. A outra metade não presta.”
“Você não está dizendo isso por ciúme dele, está?”
“Ciúme daquele desajustado, daquele escritor barato, eu? Eu. Eu teria alguma razão para ter ciúme dele? Sei que você teve alguma coisa com ele, mas francamente, foi um ato insano seu. E você sabe disso. Ciúme eu?”
“Não”, ela disse. “Claro que não. Ninguém deve ter ciúme de um perdedor como o Fabio.”

O Amor é ingrato

18/02/2008

Meu tio Fabio, um homem sábio do interior, um dia me entregou um livro do Plutarco. Confesso que tremi diante da idéia de enfrentar, na inexpugnável solidão da leitura, as páginas com certeza brilhantes mas inevitavelmente árduas do grego. Mas, prático que é, e conhecedor das limitações de seu sobrinho como leitor, tio Fabio me avisou que desejava que eu lesse somente um trecho marcado numa determinada página.

Ali se contava a história de um soldado que salvara a vida de um rei numa batalha. Um sábio imediatamente aconselhou o soldado a fugir. O soldado preferiu ficar, na esperança de ser recompensado pelo rei que salvara. Acabou morto. E logo. Quando terminei de ler essa história, imediatamente me lembrei de outro trecho de livro que tio Fabio me passara. Platão – tio Fábio sempre bebeu na sabedoria grega – contava que Sócrates disse mais ou menos o seguinte aos homens que o condenaram a tomar cicuta: que bem fiz eu a vocês para que me tratem assim?

As duas histórias tratam do mesmo tema: a ingratidão. E francamente: não sei por que iniciei minha coluna com a dupla história grega de ingratidão humana. Ou melhor. Sei sim. É que eu queria fazer uma conexão entre aqueles episódios e a vida amorosa. O fato cruel e inescapável é o seguinte: o amor é ingrato. O amor tem uma série de virtude: ele ilumina, ele embeleza a vida, ele torna divertido um congestionamento. Mas ele é ingrato como o rei que matou o soldado que o salvara e os atenienses que fizeram Sócrates beber cicuta.

Um amigo meu, Roni, outro dia veio desabafar comigo. Ele acabara de romper com a namorada, uma loira de fazer bispo chutar o poste, e ela além de gritar-lhe insultos arrebentou a pontapés a porta de seu carro. Roni é essencialmente um ingênuo do amor, um otimista das relações sentimentais. Ela sinceramente achava que, por fatos como ter arrumado um bom emprego para a namorada e num período de depressão ter-lhe até financiado um terapeuta de 120 reais a hora, receberia de volta alguma gratidão, e não uma porta de carro arrebentada a golpes de salto alto.

Tive vontade de apresentar Roni a tio Fabio e pedir a ele (meu tio) que falasse um pouco a meu amigo sobre a gratidão humana. Tive vontade de falar um pouco do soldado e de Sócrates, do rei assassino e da cicuta. Mas apenas balancei a cabeça numa muda expressão de solidariedade a meu amigo ferido na alma e no carro. Roni, refleti, passará a vida inteira atrás de uma ilusão, de uma fantasia tão irreal quanto a espada de Arthur: a gratidão amorosa. O que você possa ter feito de bom a alguém numa relação amorosa não conta no final. O que vale são apenas os crimes, geralmente imaginários, que você cometeu. Não conheço caso de amor que termine com uma declaração sincera de agradecimento pelos serviços prestados.

Roni me contou, em sua estupefação tola, que até em relação ao sexo ouviu palavras que quase o reduzem a um eunuco da corte de Ramsés. “E ela vivia me agradecendo por tê-la ensinado a ter orgasmo com penetração”, me repetia ele. “No final me disse que eu não tinha nenhuma imaginação quanto a sexo. Que eu era um idiota sexual.” O meu ponto é o seguinte: faça sempre tudo que puder por sua namorada, mulher, amante. Tudo. Agrade-a de todas as maneiras possíveis. Flores, beijos, bom sexo, atenção. Dê tudo. Mas jamais cometa o erro fatal do soldado. Não faça nada esperando gratidão. O amor é ingrato como o rei que matou o homem que o salvara da morte.

Revanche é viver bem sem você (Ou: o bizorro é bizarro)

16/02/2008

ACORDO, E ESTOU NA CAMA na cama com livros e revistas a meu redor. Apanho uma Time, e estou na seção de cultura. Fala-se de um livro com frases sábias, marcantes, curtas, seis palavras e nada mais. E então vejo uma da escritora Joyce Carol Oates. Revenge is living well without you. . Penso nos amores perdidos, nos braços que se desenrolam para sempre, e admiro a frase de Joyce Carol Oates pela simplicidade sábia e poderosa. Mas … mas … mas é exequível fazer o que Joyce prega? Não para os amantes neuróticos, pois estes se comprazem na dor, na raiva, na mágoa que não cede. Lembram-se até de alguma canção que possamos ter composto anos, anos atrás, ou de um verso perdido na ruína do tempo. Algumas amantes neurotiizadas, cinicamente carinhosas, fazem pré-fabricadas juras de amor a maridos enquanto acompanham meticulosamente os passos de escritores baratos como eu. E para nós todos, os outros, os que não somos neuróticos, as palavras de Joyce servem? Acho que sim. Ou não? Sim, sim, sim. Eu próprio. Eu detestei, muitas vezes, ver mulheres com quem rompi viver bem sem mim. Confesso. Imaginava-as, como Julietas, aniquiladas depois da ruptura, e a verdade é que elas, quase todas, ou todas mesmo, não apenas sobreviveram como melhoraram sem mim. Ainda bem. Imagino que muitas delas gostariam, também, de me ver destruído. É. Joyce está certa. Revenge is living well well without you. Ou sem mim. Tanto faz. Bizarro. Bizorro. Como diz a filósofa, escritora e blogger de olhos de jabuticaba, o bizorro é bizarro.

No, no, no

14/02/2008

Ela é morena, toda tatuada, desequilibrada, frágil.
E é um gênio atormentado.
Voz incrivelmente forte, que remete às negras americanas, e a virtude não apenas de cantar como de compor.
Vejo na tevê Amy Winehouse na entrega do Grammy. Ela foi impedida de ir para os Estados Unidos, onde o prêmio foi entregue. Não lhe deram o visto, pelo histórico de drogas e bebibas alcoólicas. De Londres, por satélite, participou da premiação.
Levou cinco prêmios, entre os quais o de melhor música, Rehab. They tried to send to the rehab/I said no, no, no. Tentaram me internar numa clínica de reabilitação, e eu disse não, não, não.

Me contam que há na internet uma bolsa de apostas para ver quanto tempo Amy, a pequena grande Amy, tão auto-destrutiva, vai durar.
De alguma forma, em sua angústia jovem tão pungente, ela me lembra Kurt Cobain. Aos 28 anos ele se deu um tiro na boca, um método altamente eficiente para se matar. Hemingway fez o mesmo.
Sei lá. O tormento pessoal é a essência do gênio de Amy Winehouse. Se ela fosse feliz, provavelmente comporia canções tolas de amor. Silly love songs.
Proust escreveu que só nos períodos de devastação íntima fez grande arte. A grande arte é infeliz, atormentada, como se vê em Amy. A arte barata, como a dos pagodes, é festiva. Tenho uma biografia de Isadora Duncan, a bailarina, nas mãos. “Toda arte foi irrigada pelas lágrimas da dor”, disse Isadora. “Vocês tinham que tê-la vista”, é o que diziam de Isadora aqueles que a tinham visto.

Amy. A delicada Amy. Numa outra música que não Rehab, ela diz: “Love is a losing game”. O amor é um jogo de perda. Alguém discorda? Me pergunto aqui, em vão, o que vai ser dela, e eu gostaria apenas que de alguma forma ela fosse protegida da ânsia de se autodestruir, e que vivesse o bastante para mostrar aos filhos, aos netos o quanto ela, tão diminuta ali diante dos homens grandes do coro em sua dança esplêndida, se agigantava no palco ao microfone.

Aconteceu em Two Neighbours

10/02/2008

O sol parece iluminar as passadas de Maria Eduarda. Ela está saindo da piscina do hotel, óculos escuros, os cabelos longos e loiros presos sobre a cabeça, um livro de Proust sob o braço direito, e os homens admiram sua beleza jovem e quase que petulante. É um nome literário. Maria Eduarda é o nome que Eça deu a uma das maiores personagens da história da literatura no soberbo romance Os Maias, passado em Lisboa. A mãe de Maria Eduarda, no livro, foge com um italiano aventureiro, e leva a menina com ela. O filho mais velho, Carlos Eduardo, fica com o avô, um homem forte e sábio. O pai de Carlos tinha se matado depois de ser abandonado pela mulher. O avô, Afonso Maia, criou Carlos, e isso acabou se tornando um privilégio extraordinário para o menino, dadas as qualidades superiores do patriarca da família. É comovente a relação entre avô e neto em Os Maias.

A mãe sumiu com a filha. Foram embora de Portugal, e nunca mais ninguém teve notícias das duas. Muitos anos depois, uma jovem fêmea aparece em Lisboa, vinda de Paris, e os homens ficam fascinados pela beleza cosmopolita dela. Carlos mais que todos, e é correspondido. Tornam-se amantes. Seria um caso de amor lindo não fosse o detalhe de que a mulher esplêndida recém-chegada era a irmã perdida de Carlos. Uma das cenas mais dramáticas da história da literatura é aquela em que, já devastado pela dor da revelação, Carlos ainda uma vez vai ao encontro de Maria Eduarda, que nada sabia ainda, e se junta a ela num sexo desesperado e quase suicida. Mais não falo além de recomendar vivamente a leitura de Os Maias.

Maria Eduarda, não a de Eça, parece alheia à admiração masculina naquele hotel à beira mar em Camboriú. E isso açula ainda mais os homens. Maria Eduarda, embora pareça modelo, é escritora. Seu romance mais recente, passado na cidade mítica de Two Neighbours, tem um título poético: “Recebo as nuvens como um presente temporário de deus”. O título é lírico, mas a trama é tensa. O casal do romance vive um amor neurótico. Brigam, e depois se reconciliam com sexo, e cada vez é maior a dose de guerra e, consequentemente, de erotismo. Uma cena especialmente boa do livro é aquela em que, depois de perder uma partida de tênis para seu namorado na quadra da casa dele, ela atira a raquete em sua direção, e ambos terminam engalfinhados no saibro. Num determinado momento, ela pede a ele que trate seu pescoço como naquele filme clássico japonês do célebre cineasta de quem, por incrível que pareça, sendo ele inesquecível, esqueci o nome. Yoshikawa? Não. Yoshikawa é o autor da magnífica biografia romanceada de Musachi, o maior samurai japonês. Esqueci, ponto. Enfim: as duas personagens de Maria Eduarda enfrentam o desafio de buscar a paz, mas à custa da quase que inevitável diminuição da intensidade sexual. Amor neurótico. Quando penso nisso, me vem uma sentença grega sublime: o vencido está destruído; o vencedor, perdido. E então me ocorre a terceira e épica luta entre Ali e Frazier pelo título mundial dos pesados. Termina o décimo-terceiro assalto, e os dois gigantes vão, exauridos, para seus cantos. Toca o gongo, e Frazier não retorna. Ali é declarado vencedor, e depois confessa que não sabia se ele próprio conseguiria seguir no combate. Frazier estava destruído. Ali, perdido. Foi sua última grande luta. Amantes neuróticos lembram, no final, os derradeiros assaltos de Ali e Frazier: estão aniquilados.

Vale a pena tudo isso?

Prazer na guerra ou tédio na paz? Ou há, para usar uma expressão de Aristóteles, um caminho do meio? Esta a pergunta que parece emergir do romance de Maria Eduarda, e então me ocorre que esta é uma das questões mais complicadas já colocadas à humanidade desde a era dos dinossauros.

O pedaço adorado de mim e sua pequena mala

06/02/2008

Encontro, no São Cristóvão, minha amiga Consuelo. Estou só, quer dizer, estou com minhas revistas. Gosto às vezes de me sentar numa mesa de bar, pedir um prato de comida e ficar lendo, e lendo, e lendo. Revistas são parte essencial da minha vida, e uma companhia para mim fiel e inspiradora. Viajo, rio, aprendo, sonho, sofro e me enlevo pelas páginas de uma revista. Enquanto houver uma revista jamais estarei sozinho. Não gosto que me interrompam quando estou lendo uma revista. Mal levanto os olhos. Não, não estou disponível enquanto estou lendo uma revista. Esta é a mensagem dos olhos para baixo numa mesa de bar enquanto agarro, como a uma mulher interessante e provocadora, as páginas de uma revista.

Não, não estou disponível. Quer dizer, não para uma mulher que não seja Consuelo. Consuelo e eu somos amigos há muitos anos. Quase fomos mais do que isso num certo momento, mas acho que fizemos uma acertada opção pela amizade. Consuelo desencaminhou um padre certa vez, e seu relato bem-humorado da sedução do homem de batina foi e é uma das coisas mais divertidas que ouvi na vida. Como poderia alguém condenar o padre considerada a sedução milionária de Consuelo? Rosto certo, voz certa, humor certo.

Consuelo não faz cerimônia para interromper minha leitura compenetrada, e eu não me irrito com isso. Não com ela. Faz tempo que desisti da idéia de ficar bravo com Consuelo. Ela está com um grupo de amigas da revista em que trabalha, e vem conversar comigo. Consuelo me conta que está namorando com um cara bem mais novo que ela.
“Já que você definitivamente não quer me conhecer biblicamente …”, ela brinca comigo.
“Sempre vou te amar, Consuelo. Na Birmânia se um homem e uma mulher trocaram mais de
cinco mil palavras eles estão casados para sempre, não sei se você sabe. Nós já trocamos pelo menos umas 50 000 palavras, e então pelas leis da Birmânia estamos casados por pelo menos duas encarnações.”
“Você me condena, Fabio? Você me condena por estar com um cara mais novo?”
“Tenho dificuldade para condenar um inimigo, você sabe. Um amigo, simplesmente impossível. Se o código de leis do Fabio Hernandez valesse, meus amigos podiam fazer qualquer coisa, Consuelo. Nenhum jamais entraria em cana.”
“Eu só fui entender a situação ao viver, Fabio. Sempre fui preconceituosa.”
“Hmmm”, disse. Ela queria falar sobre o assunto, e então eu apenas dava a ela sinais de que estava ouvindo.
“Os homens mais jovens. Sei lá. Fabio. Eles são mais alegres. Outro dia você escreveu sobre os olhos de Natasha.”
“Não, não fui eu. Foi o Tolstoi. Apenas traduzi de uma nova edição americana de Guerra e Paz.”
“Não precisa entrar em detalhes, Fabio. Lembro de cada palavra daquele texto sobre os olhos da Natasha.”
“Engraçado. Eu traduzi, mas esqueci, Consuelo. Você poderia …”
“Claro. Pedro encontra Natasha, anos depois, e não a reconhece não porque ela tivesse mudado, ou porque estivesse num lugar improvável, mas porque seus olhos não brilhavam mais.”
“Lembrei. Sei lá. Acho que eu remetia a mim mesmo, Consuelo. Para a minha era da inocência. Também eu tive olhos de Natasha. Eu … eu … sei lá. Eu acreditava nas coisas.”
“É isso, Fabio. Ele tem olhos de Natasha. O meu namorado. E pelos olhos dele acho que recuperei os meus.”
“Hmmm.”
“Não é uma questão de sexo. Quer dizer. Também é, admito. Mas não é só isso. Juro, Fabio.”
“Ele. Ele ainda acredita nas coisas e nas pessoas, Fabio. E de alguma forma voltei a acreditar também. Você, Fabio. Basta olhar seus olhos tristes, de filhote de cocker, para saber que você não acredita mais em nada. Não é necessário sequer ler você, Homem Sincero.”
“Mas eu acredito. Juro.”
“Próxima piada, por favor. Fabio, você por acaso está querendo um emprego no Cirque du Soleil?”
“Acredito em você, Consuelo. Na Birmânia …”
“LOL, Fabio. Não é assim que você escreve? LOL.”
“Consuelo?”
“Fabio?”
“Olha. Escuta. Sei lá. Eu só quero que você seja feliz. Vocês. Você e seu garoto. Que a vida seja o menos insuportável possível para vocês.”

Eu tinha que ir. Era meu dia de pai. Minha filha dormiria comigo, e comeríamos pipoca, tomaríamos Nescau, e riríamos vendo Friends. E dormiríamos tarde, como sempre. A pequena mala de minha filha me alegra quando a vejo chegar em minha casa, e me entristece quando a vejo partir na manhã seguinte. Tempo de apanhar minha filha. Saudade dela. Lembro de um verso de Chico. Saudade do pedaço de mim. Tomara que um dia ela more comigo. Pago a conta, pego minhas revistas amadas, estou pronto para ir.

“Fabio?”, Consuelo diz.
“Consuelo?”
“É verdade aquela história?”
“Qual?”
“A da Birmânia. Nós dois …”
“Claro que sim, Consuelo. Pelas leis da Birmânia nada nos separará, nem nessa vida e nem nas próximas duas. Nem seu namorado jovem seria capaz de nos deter na Birmânia.’
“Bobo”, ela diz. “Por um momento pensei que nós dois talvez …”
“LOL”, eu digo, e parto rumo ao pedaço adorado de mim e sua pequena mala que me alegra e me entristece dependendo do horário.

Um homem e sua paixão

03/02/2008

Olha. O título acima é o de um filme que acho que só eu vi. Quer dizer. O Jabor também: Eu Te Amo, para mim o melhor filme dele, cita Um Homem e sua Paixão. Engraçado. Não é sobre o filme que eu sentei aqui para escrever. Mas já que dei aquele título. Mastroianni, Monica Vitti. Um casal como tantos outros. Moram numa casa nos subúrbios. O personagem de Mastroianni um dia está andando pelo centro quando alguma coisa — o destino? — o atrai a um leilão. Ele levanta ao acaso a mão teimosamente na disputa de algo. Era uma câmara.

A câmara se torna sua paixão. Ele filma tudo, e o resto vai perdendo importância, incluída a mulher — oh Monica, você devia ter sido preservada para todo o sempre com a beleza italianamente assombrosa daqueles dias em que era rainha sobre as rainhas. Um cara um dia lhe pede carona, um jovem errante, e o personagem de Mastroianni acaba acolhendo-o em sua casa. Uma das cenas mais excitantes e simples do cinema, para mim, é aquela em que Mastroianni, com um esguicho nas mãos, começa a jogar jatos de água nos dois, a mulher e o jovem vagabundo, até uni-los. A água torna transparente a blusa de Monica, ou quase. Pelas mãos do marido ela vai se tornando uma adúltera relutante. Adúltera relutante. Gosto da expressão. Alguém aí é uma adúltera relutante, ou conhece uma? Naquele filme Monica Vitti é uma mulher que ama desesperadamente o marido, e também é uma adúltera relutante. Uma hora ele parece interessar-se novamente por ela, e se abraçam, e se beijam, e ele a arrasta para a cama. Ela suspira aliviada. Parecia ter recuperado o marido que se fora rumo a um mundo apenas dele, e ela soube que o perdera para sempre quando percebe, depois do sexo, a presença da câmara de filmar. Ele interpretara um papel. Ele estava excitado não pela mulher, e que mulher, mas pela filmagem.

A cena final, ah, a cena final. Vontade de contá-la, mas talvez alguém queira ver o filme, e então paro por aqui. Digo apenas: entra em qualquer lista curta dos melhores finais de cinema. Na minha opinião, pelo menos, e suponho que na do Jabor.

. Eu queria, na verdade, falar de um herói da minha vida e de muitas outras pessoas, ou anti-herói, sobre cuja obra o tempo não haverá de fazer efeito. Bobby Fischer, o enxadrista americano, morto há poucos dias. Vejo a página de obituários da Economist, e não há como não se emocionar com a foto preto e branco do jovem Fischer. Jovem ainda, paletó e gravata, queixo apoiado na mão esquerda, abotoaduras elegantes, os olhos postos com devoção concentrada no maior amor de sua vida: o tabuleiro de xadrez. Ele nunca casou, ele nunca fez nada além de jogar xadrez e, progressivamente, perder o juízo. Ah, mas como ele jogava, como ele jogava.

Bobby Fischer acabou com um duradouro reinado dos russos no xadrez em 1972, numa histórica disputa na Islândia. Os líderes soviéticos usavam a hegemonia no xadrez para apregoar a “superioridade” do comunismo. Ao bater Boris Spasski, o campeão mundial, Fischer se tornou um herói da Guerra Fria. (Não vou escrever sobre a Guerra Fria, simplesmente me recuso. Preguiça. Wikipedia para maiores detalhes.) Fischer de alguma forma antecipou no tabuleiro o fim do comunismo.

Spasski era assessorado, nos intervalos das partidas pelo título mundial, por 35 grandes mestres de xadrez. Fischer tinha um caderno de anotações, e ele próprio, e sua mente prodigiosa. E venceu. Fischer sonhava fazer uma casa na forma de uma jogada clássica de xadrez, o roque. Não fez. Ele tinha sido o principal trunfo de si próprio na Islândia, e depois se converteu também em seu pior inimigo. Via conspiradores por toda parte. Tinha sempre a seu lado pílulas para neutralizar envenenamento em sua comida.

Morreu solitário como sempre foi, Bobby Fischer, um gênio, um gigante, um herói improvável, o campeão eterno de todos nós os desajustados, e foi com um arrepio que eu soube que o local escolhido por ele para morrer foi a remota Islândia, onde vivera seus dias de rei e guerreiro, onde fora capaz de destruir, sozinho, apoiado apenas em seu extraordinário talento e em sua vontade inquebrável, um exército de quase 40 grandes mestres soviéticos ávidos por liquidar aquele judeu americano petulante. A Islândia era acolhedora para ele, como era acolhedor o clube de xadrez novaiorquino em que, garoto, estudava longamente o jogo quando devia estar na escola.

. E então me lembro de Fitzgerald, e de seu Gatsby, um dos meus grandes heróis literários. E me vem obsessivamente a sentença final do romance de Fitzgerald, e ei-la, braços remando contra a corrente, rumo ao passado, estamos todos condenados a isso. Jay Gatsby amava Dayse, a pérfida Dayse, e enriqueceu apenas para conseguir se reaproximar dela, anos depois, ela já casada. Ele voltou no tempo, ele era apaixonado, ela era calculista, e ninguém dava festas como as de Jay Gatsby, e Dayse se atirou nos braços dele fascinada pela opulência de Gatsby, uma adúltera nada relutante, uma mulher que tinha seu preço como se fosse uma jóia, e ela e todos o abandonaram quando as coisas correram mal para ele, exceto o narrador, que grita aquele grito sublime de amizade, admiração e lealdade quando Gatsby se afasta derrotado do local onde conversavam os dois, e este é um grito que tanta gente como eu gostaria de ter gritado para Bobby Fischer: “Ei, Gatsby, você é melhor que todos eles.”