Todos os casamentos são difÃceis, mas alguns são mais difÃceis que os outros. Foi o caso do casamento de Cris. A sogra invadia, um clássico. Casamentos em que sogras mandam mais que a mulher ou o marido são cadáveres. Cris tinha em seu quarto uma foto em pose provocadora tirada por uma amiga fotógrafa, e a sogra reprovava abertamente aquela imagem. Pernas abertas, um cigarro no canto da boca, um ar de quem bebeu toda a noite anterior e não teve tempo para dormir. Não cabe aqui dizer que era uma das fotos mais inocentes entre as feitas pela amiga de Cris. A irmã do marido de Cris também dava mais palpites do que o necessário, e ele gostava de ouvi-la. Cunhadas devem falar o mÃnimo, eis uma frase que, se aplicada nos lares, salvaria muitos casamentos.
Cris se deu conta de que seu casamento com Frusciante estava liquidado quando se esqueceu da data. Que era a senha de seu cartão bancário. Teve que pegar a aliança, que logo depois atiraria triunfante ao mar, para ver o dia em que, lindamente diáfana em seu vestido quase transparente sem sutiã e abarrotada de esperanças, dissera sim a Frusciante. O dia quatro de março estava gravado da aliança. Um amigo gay estava presente na cerimônia do arremesso da aliança à imensidão azul. “Volta para o mar, oferenda”, gritou o amigo. No álbum de fotos os dois pareciam felizes para sempre. Foi um casamento moderno, de gente descolada, mas não faltou a foto em que um bebe champanha no copo do outro. Não foi uma noite de núpcias incrÃvel. Cris capotou de tanto beber no casamento, em que segundo amigos parecia estar “em transe”, e Frusciante não lidou muito melhor com a bebida que tomara.
Casamento que começa em ressaca e não em orgasmo também é cadáver.
A tolerância diminui na mesma proporção em que o amor diminui, escreveu um especialista oriental na arte do amor, Vatsayanna. Na etapa final de seu casamento Cris estava extremamente impaciente com Frusciante. Não suportava quase nada dele, a começar pelo sapato tricolor que ele afirmava ser de uma marca chique e cara. “Era sapato de palhaço”, na avaliação de Cris. Uma avaliação cruel como um cossaco russo, para usar uma frase de Tio Fabio, falecido homem sábio do interior. Deus o tenha.
Cris pensou um dia que, se não podia se livrar no momento do marido, no sapato tricolor podia dar um jeito. “Ninguém era obrigado a aguentar a visão daquele sapato de palhaço”, diria ela depois do episódio. Cris jogou um pé no lixo. Quando Frusciante um dia quis calçar seu sapato tricolor, encontrou apenas um pé. Procurou o outro inutilmente.
“Você viu, Tina?”
“Você deve ter esquecido na sua irmã”, disse ela, certa de que prestara um serviço à beleza do planeta ao jogar no lixo um pé do sapato de palhaço.
A verdade só foi revelada nas conversas finais do casal, meses depois. Essas conversas, clássicas nos casamentos destruÃdos, são uma penosa prestação de contas em que cada um sai ainda com mais raiva do outro, se é possÃvel. Poderia haver um atalho silencioso rumo à separação.
“Tem uma coisa que eu preciso te dizer”, disse Cris.
“Hmmm”, respondeu Frusciante.
“O sapato. Aquele. De palhaço. Eu joguei fora o pé que você não encontrou.”
“Você é doente”, disse ele.
“A pior doença é o mau gosto”, disse ela.
Feita a revelação, e encerrado pouco depois o casamento, Cris prometeu a si própria jamais voltar a ter um relacionamento com qualquer homem que possuÃsse sapato tricolor.