Amigos até o fim
“PAULO?”
“Não acredito. Você? Fabio Hernandez, o Homem Sincero? Faz uns dez anos que você não me liga, Hombre. Não vai me dizer que alguém morreu.”
“Sei lá. Bateu saudade. Soube que você tava por aqui. Nem sabia mais se seu celular era esse e arrisquei.”
“Pena que você me ligou muito em cima, Hombre. Amanhã tou indo embora. Adoraria tomar uma cerveja com você no São Cristóvão. Mas.”
“Sei que você tá morando longe. Te leio.”
“Também te leio, Hombre.”
“Quer dizer que cada um de nós pelo menos tem um leitor. É um bom começo. Ou um mau final?”
“Veja as coisas pelo lado positivo sempre, Hombre. Como o Confúcio ensinou.”
“Você tá blefando, Paulo. Isso tem muito mais cara de Paulo Coelho que de Confúcio. Ver as coisas sempre pelo lado positivo. Você costumava citar dois filósofos gregos …”
“… um que ria diante da miséria humana e outro que chorava. Outros filósofos, depois daqueles dois, usavam essa diferença de atitude para aconselhar as pessoas a rir em vez de chorar, Hombre.”
“Num determinado momento achei que você ia virar filósofo, Paulo. Putz, posso te chamar de Teco?”
“Claro, Hombre. Os apelidos de infância vão ficando cada vez mais doces à medida que os anos passam. Te remetem para os tempos em que a gente era feliz. Adoro ser chamado de Teco.”
“Meu, a gente é feliz na infância porque não precisa tomar decisões. A felicidade acaba quando passamos a ser obrigados a decidir.”
“Eu jamais teria virado filósofo, Hombre. Sou repórter. Minha sabedoria cabe numa lauda. Em meia lauda, na verdade.”
“Lauda, Teco? Caraca. Fazia muito tempo que não ouvia essa palavra. Deve ter saído já do dicionário. O seu erro foi tuitar em vez de filosofar.”
“Hombre. Achei que você ia se especializar em escrever textos de despedidas. Num determinado momento, nas suas histórias, parecia que nenhum casal se encontrava. Apenas se desencontrava.”
“É uma ironia, Teco. Eu, péssimo para despedida, escrevendo tanto sobre despedida. Podia estar escrito no meu cartão, se tivesse um. Especialidade: textos de despedida.”
“Nos últimos tempos, você ampliou o repertório. Listas, humor.”
“Voltei a rir quando escrevo, Teco. Isso não acontecia desde os primeiros tempos da VIP. Naqueles dias em que você dizia na redação, a quem reclamava mais seriedade nos textos, que quem queria coisas realmente sérias devia ler Proust.”
“Jura que eu falava isso? As pessoas dizem que eu dizia uma porção de coisas. Olha, não participei do debate da arte e da pornografia no seu blog. Mas A Origem do Mundo é grande arte. Quando fui ao D’Orsay fiquei 40 minutos olhando pro quadro. Pornografia é o Boris falando dos garis. O Courbet poderia servir de prova de que Deus existe para quem quisesse comprovar isso.”
“Teco. Lembra aquela vez que a gente passou um mês na casa do seu pai na praia com pão pullman, presunto, queijo e nescau?”
“Hombre, o sol saía às 6 da manhã naquele verão ou é minha imaginação?”
“Naqueles verões só fazia sol, Teco. Não me lembro de chuva nem na alma e nem no céu. Aquela menina da esquina. Lembra?”
“Todos éramos apaixonados por ela, Hombre. Achei que ela estivesse a fim de você. Lenira. Era um nome que durante anos me fez tremer ao lembrar. Num certo momento decidi que se tivesse uma filha chamaria de Lenira. Você … saiu com ela?”
“Nada, Teco. Ok, uma vez, e que beijo, mas foi só. Mas uma vez escrevi um conto em que um garoto, eu, ganhava a menina mais linda da praia, ela. Acho que foi o único final feliz que consegui escrever.”
“Annie Hall, Woody Allen, cena final, Hombre. Tudo acabou e o cara faz uma peça de teatro em que a conversa final tem outro desfecho. Em vez de ela ir embora, ela diz que ama o cara e não pode viver sem ele. E aí o cara olha para a câmara e diz que, se na vida real as coisas são duras, na ficção podem ser melhores. A Diane Keaton cantando naquela barzinho Seems Like Old Times vale a filmografia inteira de muitos cineastas admirados pela crítica.”
Seems like old times: Annie Hall
“Um dos meus três filmes favoritos, Teco. Annie Hall, Corrida contra o Destino e A Mulher do Lado. Nem com você …”
“… nem sem você. A frase final de A Mulher do Lado. Certos amores são assim mesmo, Hombre. Você sabe. O Depardieu tava magrinho, e a Fanny Ardant era uma brunette incrível. Eu acrescentaria Duck You Sucker nessa lista. ”
“Vem cá, Teco. A Fanny Ardant precisava mesmo ter dado aqueles dois tiros? E depois do sexo, em pleno fastio pós-coito?”
“Sem os tiros seria um filme banal, Hombre. Não existe um grande filme que não seja trágico. Comédia só serve para comer pipoca. E o Truffaut sabia disso. Reparou que você não ri nos filmes dele?”
“Teco?”
“Hombre?”
“Continua ateu ou teve uma súbita iluminação?”
“Deixei de acreditar no Trotsky, Hombre, mas isso não significa que tenha passado a acreditar em Deus. Quer dizer apenas que não acredito mais em nada, exceto talvez uma boa reportagem que eu por acaso consiga escrever.”
“Mesmo assim, Teco. Escuta. Vai com Deus.”
“Hombre.”
“Hmmm.”
“Também eu fiquei ruim de despedida. Que nem você. A única diferença é que não escrevo sobre elas.”
“Ainda bem. É monopólio meu. Ah, tua mãe?”
“Putz, não quero nem pensar em me despedir dela amanhã, Hombre. Evito falar com ela no Skype porque dói. Escrevi tanto sobre meu pai e tão pouco sobre ela. Vou à casa dela agora.”
“Ainda ali no Previda?”
“Sure, Hombre. Onde nasci e cresci. Na José Rubens 117.”
“Será que ela lembra de mim? Dá um beijo nela por mim, Teco.”
“Sure, Hombre.”
“Lembra como a gente se despedia na faculdade, Teco?”
“Sivemu. Claro que lembro.”
“Sivemu, Teco.”
“Sivemu, Hombre.”