Archive for Maio, 2008

Neste mundo em que tudo fenece

30/05/2008

Uma mulher me esperava no restaurante. Ela sempre chegava um pouco antes; eu sempre um pouco depois. Fazia muito tempo que não a via, mas certos hábitos jamais se alteram. Vi que ela folheava um livro, acomodada numa mesa para dois. Ela sempre tinha um livro à mão para a hipótese de eu demorar mais que o razoável. O livro que ela lia naquele momento, vi depois, era uma pequena biografia de Marcel Proust sobre a qual eu escrevera numa revista.

Era Mariza.
Ela estava de volta à cidade por uns dias para visitar a mãe. Mariza, depois que rompemos, conheceu uma fazendeiro de Mato Grosso. Logo se casaram e ela mudou para lá para viver seu novo amor bucólico.

“Tudo bem?”, perguntei.
“Graças a Deus.”
Rimos e o gelo se quebrou. Era uma piada particular nossa. Mariza é atéia. Ela jamais acreditou em Deus. Num certo momento, deixou de acreditar também em mim. Foi aí que nosso romance começou a terminar. Reencontros com amores passados servem para mostrar muita coisa. Mostram, por exemplo, como uma intimidade construída em anos pode ser dissolver instantaneamente com o rompimento. Você trata com cerimônia constrangida alguém com quem, até pouco antes, tinha a mais absoluta liberdade. Só falta a gente dar continência ao outro.

“A melhor coisa que você fez por mim, em muito tempo, foi indicar na revista este livro”, ela disse. “Sou realmente muito grata a você.” Era a Mariza de sempre, irônica, às vezes ferina mesmo num banal agradecimento pela indicação de um livro.

“Uma frase”, ela continuou. “Tem uma frase neste livro que talvez seja a mais linda que eu já li. E a mais triste também.” Ela me passou o livro aberto numa determinada página. Nessa página, uma sentença estava sublinhada. Mariza costuma sublinhar as frases de que mais gosta nos livros que lê. Eu tentei muitas vezes fazer o mesmo, mas minha falta de método jamais me permitiu consolidar esse hábito. Me impressionei ao saber que Vargas Llosa faz uma ficha de cada livro que lê. Pensei em copiá-lo, mas meu lado caótico me impediu.

Li a frase sublinhada por Mariza. Ela tinha razão. É uma das frases mais tristes que alguém já escreveu. Proust disse: “Nesse nosso mundo onde tudo fenece, tudo perece, há uma coisa que se deteriora, que se desfaz em pó até de forma mais completa, deixando para trás ainda menos traços de si do que a beleza: a saber, a dor”.

A dor. A dor da perda de um amor. A gente imagina que vai morrer sem ele. Como dói aquela ausência. Como dói a perspectiva de nunca mais ter nos braços alguém que a gente imaginava ao nosso lado para sempre. Nunca mais. E no entanto quando aquela dor torturadora se vai, vencida enfim pelo correr dos longos dias, o que sentimos não é alívio, mas vazio e frustração. É como se pensássemos: o grande amor exige uma dor eterna, um luto no coração até o último dia. Só que a dor, como disse Proust, dura ainda menos que a beleza.

Devolvi o livro a Mariza e trocamos de assuntos. O resto do almoço foi, quase todo, alegre. Lembramos certas passagens de nosso romance como na cena final de um dos meus filmes preferidos, Annie Hall, de Woody Allen, e rimos. Lembramos, por exemplo, o dia em que entramos por acaso numa festa de firma num bar do Terraço Itália e acabamos comendo mais, bebendo mais e rindo mais do que qualquer pessoa naquele salão. Lembramos a madrugada bêbada numa boate em que uma dama da noite recomendou compostura a Mariza. Quando Mariza ameaçou entrar em lembranças menos amenas, e delas extrair uma raiva que o tempo foi incapaz de mitigar, entendi que era a hora de pedir a conta. Certas histórias, é melhor não desenterrá-las, escreveu Shakespeare. Concordo.

E então nos despedimos. Sem drama. Ela refizera sua vida e eu a minha. Ela voltava para Mato Grosso e eu para minha rotina de escritor barato. Um novo e promissor capítulo amoroso se instalara na vida de Mariza, e a verdade é que meu coração voltara a bater rápido, bem rápido, por uma mulher. Já não doía como doera nem nela nem em mim, mas ali compreendi com clareza que a morte da dor amorosa também pode, de uma forma estranha, doer.

Eu também vou estar ali, filha

27/05/2008

Não sei se você vai ler isso, filha. Você é tão menina, e acho que você choraria se lesse isso hoje. Talvez outra hora. Vou fazer que nem aquele professor americano que, com os dias contados, deu uma aula de como morrer, e como viver, a uma platéia enlevada. A aula acabou no YouTube, virou um fenômeno mundial, e o professor disse que a primeira razão de ter feito o que fez foi mostrar aos filhos o quanto os amava. Ele disse que sua mensagem era como uma garrafa com palavras jogada ao acaso da água do mar. Talvez a garrafa seja encontrada e o conteúdo lido, talvez não. O que escrevo talvez seja lido por você, pedaço adorado de mim, talvez não. Jogo dados com o destino, para usar uma frase de Einstein.

Fiquei tocado com o que você me disse outro dia, filha. Não, não quero voltar a nascer, você disse ao entrar no carro na hora em que a busquei em sua avó. Você tão garota, e palavras tão profundas pronunciadas com a ênfase necessária, os pequenos olhos brilhantes molhados. Mas a voz firme. Imagino que alguém tivesse falado com você sobre reencarnação. Que eu poderia responder além de que eu também não? Nascer em outra família? Ter outro pai que não o que eu tive? Outra mãe? Outros irmãos? Outros filhos? Outros amigos? Outra filha que não você, pedaço adorado de mim?

Não. A idéia é insuportável para mim. E naquela conversa que tivemos vi que para você também. Filha. Minha vida seria miseravelmente triste sem você. Não é que eu não queira outra vida. Eu desprezo, eu renego o que quer que seja que signifique viver sem as pessoas e os lugares que amo. Filha. O professor americano está morrendo, e tem uma filhinha pequena. Menor que você. Ela não entende as coisas direito ainda. Ele disse que quer que ela saiba, quando crescer, que ele foi o primeiro homem que se apaixonou por ela. Achei isso lindo, triste, é verdade. Mas mais lindo que triste. Uma declaração de amor sublime. A sensação de que foi tão amada pelo pai morto tão cedo haverá de dar força à pequena filha do professor na hora certa.

Filha. Eu também. Fui o primeiro homem a se apaixonar por você, e se há uma coisa certa é que nenhum outro a amará mais do que eu, por mais que a ame. Sua pequena mala. Quando ela está em casa o papai fica muito feliz. A cabeleira rebelde ruiva vai dominar e alegrar a casa. Um dia você terá idéia de como ver a seu lado as trapalhadas de Michael e Dwight, ou as de Joey e seus amigos, tornou a vida do papai melhor. O jeito furtivo como olho com adoração para você quando você está entretida com Michael. Se você um dia ler o que estou escrevendo, queria que você levasse sempre essa imagem com você: meu olhar furtivo e amoroso para você. Gosto da forma sutil como você cobra minha atenção ao ver as comédias, quando ameaço pegar um livro ou uma revista, e gosto ainda mais quando você coloca seu travesseiro na barriga do papai e põe sua pequena cabeça dourada nele.
Nada nos tirará isso, filha. Pode parecer bobagem o que estou escrevendo, mas o tempo vai mostrar a importância das nossas noites cômicas.

Mais para a frente vou colocar Rei Leão para vermos juntos. Lembro que você chorou na primeira vez, mas na segunda talvez a gente consiga alguma coisa além das lágrimas. Ali há uma lição, assim como na mensagem do professor que está morrendo. O ciclo da vida. Me ocorreu uma frase de um filósofo chamado Sêneca que levo sempre na mente. Ele estava escrevendo a um discípulo, Lucílio. “Por mais que te espantes, aprender a viver não é mais que aprender a morrer.” Passamos tanto tempo atormentados pela idéia da morte, esmagados pela finitude das coisas, que morremos mil mortes antes de finalmente morrermos. Este o sentido da frase da Sêneca. Espero que você um dia você leia Sêneca, filha. Viver sem o terror da morte é viver uma vida bela, não importa a quantidade de anos. É esse o ensinamento de Sêneca, e também o do professor americano. As pessoas pensam que falar de morte é mórbido, mas não é, filha. O que na verdade faz mal é não falar de morte, como se ela não existisse. Se falamos dela, se a encaramos com naturalidade, vivemos uma vida boa. Se fingimos que ela não existe, somos esmagados pelo seu fantasma a cada dia.

A cena do Rei Leão que quero ver com você é aquela em que o Simba e seu pai contemplam do alto da montanha a imensidão do céu e as estrelas. De alguma forma estarei ali, sempre olhando por você, diz o pai a Simba com voz grave e firme, cheio de força e sabedoria. Eu também estarei ali sempre olhando por você, Camila, pedaço adorado de mim.

O homem menos gentil do mundo

26/05/2008

Meu amigo Thunder, com sua voz estentórea de Fred Flintstone, é um iludido do amor. Como a Carrie de Sex and The City, ele marcha impávido, e derrotado, rumo ao amor perfeito. Recebi dele um email. Confesso que muitas vezes abandono os emails longos de Thunder pela metade, mas este me prendeu. Liguei para Thunder e ele aceitou que eu publicasse o texto aqui, desde que sua identidade fosse preservada. Aceitei. Ele achou que sua história poderia ajudar outros homens. Ei-la:

“Algumas mulheres já me disseram que sou um homem gentil. Curiosamente, todas disserem isso antes de me deixar. Penso que é o mesmo raciocínio usado por alguns homens que dizem “Você é a mulher mais inteligente que conheci” antes de dar no pé. Mulheres inteligentes demais são problema. Pensam demais, discutem demais. Quanto alguns homens fazem tal elogio estão na verdade apontando um defeito. De modo que comecei a acreditar que ser gentil era um defeito. Samantha, minha última namorada, recentemente andou jogando esta conversa de novo para o meu lado e pensei: mais uma que se vai.

Foi em um restaurante. O restaurante era condecorado, ela estava linda, com um vestido novo. Havia um clima festivo no ar e eu me sentia bem. No entanto, percebi que no decorrer do jantar o clima começou a pesar. Ela, de repente, ficou implicante, disse que queria ir embora e me apunhalou: “Você é gentil, mas não presta atenção”.

Gelei. Lá vinha a história macabra da gentileza. “O que você quer dizer com isso, gentil? Não sou gentil, não”, defendi-me prontamente. “Você é, sim, não me venha com essa”, afirmou, como se me acusasse de ter devorado todo o chocolate da despensa. “Só que é gentil como os porteiros são, como manobristas são. É uma gentileza impessoal, asséptica.”

Já tinha visto aquele filme. Era um filme sem legendas, falado em turco. Que diabos aquela mulher estava tentando me dizer? Samantha não brinca em serviço, seu recado era sério e eu não conseguia entender patavina. Ela detonou a bomba: “Hoje é nosso aniversário de namoro. Hoje, exatamente hoje. Te disse isso na semana passada”.

Ela disse? Ela disse. Me senti miserável. Todos os anos era a mesma coisa. Ela me avisava um pouco antes e eu me esquecia logo depois. Por que eu vivia cometendo esse ato falho? “É seu pavor com compromissos”, explicou-me didaticamente. “Você esqueceu a data e acha que não namora comigo há anos. “Ah! Meus Deus, lá vinha ela trazendo Freud para sentar conosco. Freud. Aqui. NÃO!, Samatha.

Este ano, tenho de admitir, ela vinha fazendo um trabalho de marketing já há alguns dias para evitar frustrações. Mostrou-me o vestido novo, falou-me deste restaurante… Meus Deus, como fui estúpido! Como pude esquecer e deixar-me flagrar nesse erro anual? “Samatha, por que você faz isso comigo?”, perguntei. “Por que você faz com que eu me sinta miserável?” Ela encarou-me com os olhos marejados, levantou as sobrancelhas em um último arroubo de orgulho e devolveu: “Por que você faz eu me sentir uma romântica ridícula e frustrada?”

Tenho medo pânico de mulher frustrada. Ela é capaz de destruir tudo num raio de 100 quilômetros só com a amargura que carrega no coração. Não quero amar uma mulher frustrada, mas não quero me sentir incompetente o tempo todo.

Por que é tão importante que eu me lembre de uma data? Por que, afinal, ao abrir os olhos naquela manhã tão ilustre, ela apenas não me estalou um beijo e disse “Benzinho, é nosso aniversário”, em vez de me armar uma emboscada – na qual caio todos os anos? Lembrei-me de Fabio, um velho amigo, que diz que as mulheres sentem um prazer perverso em se fazer de mártires nos martirizando.
E por que, finalmente, tenho de executar a fantasia romântica dela como ela quer? Para mim, aquele dia, fosse ele 12, 14 ou 31 de setembro, tinha todos os ingredientes para ficar gravado em nossa memória como uma noite inesquecível. Falhei em algum ponto do roteiro que ela tinha escrito. Mas … eu queria continuar no filme? Ou era hora de largar o papel?

“Quer saber, Samatha?”, falei como que tomado por um novo espírito. “Você não vai acabar com a minha noite, de maneira alguma.” O espírito era de Humphrey Bogart. Freud tinha saído sem pagar a parte dele. Levantei o braço, fiz um gesto corajoso, viril e, considerada minha conta bancária, ligeiramente irresponsável: “Garçom, uma Veuve Clicquot”. Durão. Decidido.

Samantha me olhou com um brilho novo nos olhos. Sorriu. Pegou na minha mão. “O que vamos comemorar?”, perguntou. ” Minha emancipação”, respondi triunfante. “Olha. Não presto atenção mesmo nas suas histórias porque você só fala de você mesma.” Ela ameaçou me esbofetear, mas fui mais ligeiro. Apontei a porta de saída. “Você … você é o homem menos gentil do mundo, você é um troglodita, Thunder”, ela disse antes de se encaminhar para a saída.

Eu, o homem menos gentil do mundo? Deus, foi um dos elogios mais tocantes que recebi em minha vida. Pensei nisso enquanto joguei o conteúdo magnífico daquela garrafa de champagne goela abaixo.”

Em nome do pai

19/05/2008

Eu. Sei lá. Naqueles dias. Penso em mim mesmo lá para trás nas terras remotas e geladas do nunca mais, nunca mais, nunca mais, como escreveu Rubem Braga. A imensa dor das coisas que passaram. Camões.
Eu. Sei lá. Naqueles dias. Eu acreditava. Olha a minha foto. Meus olhos castanhos, quase alcançados pelos cabelos loiros. Os olhos castanhos e grandes daquele loirinho. Eles eram olhos de Natasha. A Natasha de Tolstoi e de Guerra e Paz. Ninguém lê mais Guerra e Paz, não é? Mas Natasha. Talvez você queira saber por que a citei. Um trecho de Guerra e Paz. Pedro reencontra Natasha depois de alguns anos. Deus, como ele a tinha amado naquela Rússia sitiada pelas tropas napoleônicas e tão bem descrita por Tolstoi. Pedro a perde e depois a reencontra, mas demora para reconhecê-la, não porque ela estivesse mudada, ou porque era um lugar improvável para uma mulher pura como tinha sido Natasha. Ela tinha perdido o brilho dos olhos. Natasha não tinha mais os olhos de Natasha.
Eu. Sei lá. Naqueles dias. Eu tinha olhos de Natasha. Olha. Aquela foto. O loirinho voltando do futebol. A sacola na mão esquerda. A camisa de mangas curtas aberta. Sorrido para a câmara de não sei quem. Uma foto em branco e preto. Minha mãe ama aquela foto, pelo filho feliz e por ela mesma, imagino. Minha mãe deve regressar no tempo ao ver aquela foto do menino futebolista. O futebol. Amei o futebol mais que a mim mesmo, e com uma bola vivi os dias mais felizes da minha vida, e ter deixado de jogar tão garoto por uma contusão cruel como um cossaco russo, ah, sei lá, eu podia ter passado sem essa. Olha. Aquela foto. Depois do jogo. Eu era um menino que sonhava. Olhos de Natasha. Meus ombros eram muito estreitos para carregar a dor. Logo eu jogaria meu último jogo. O último. Mas ali. Naquela foto. Eu era feliz para sempre. Lol. Rio comigo mesmo agora. Minha perna esquerda, a única que eu sabia usar no futebol, não me traiu. Quem me tirou dos campos dos sonhos foi a perna direita.
Eu. Sei lá. Naqueles dias. A Cristina. Loira, delicada, rosto redondo de alemã saudável. Camisa branca, saia azul de estudante. Nós estudávamos juntos, e na classe A. Minha escola. Eu era fascinado por resolver problemas de matemática. Achar o xis. Como achei o xis. Mas jamais encontrei o coração da Cristina. O diretor dividia as salas de acordo com o desempenho dos alunos. A Cristina e eu. Nós éramos, naqueles anos em que estudamos juntos, da classe A. Todos a amávamos. Ela era a menina mais linda da escola. E parecia não saber disso. A Cristina. Ela não vai ler o que estou escrevendo. E talvez seja bom. Uma viagem rumo aos dias em que foi rainha pode doer nela, e eu não gostaria de magoá-la.
Eu. Sei lá. Naqueles dias. Meu pai. Meu pai já era a figura dominante na minha vida. Papai. Meu pai me inspirou na vida, na doença e na morte. A força invencível na adversidade. Marco Aurélio, o rei-filósofo, escreveu isso sobre um de seus mestres em suas Meditações. Meu pai. Papai foi grande para mim na presença, e ainda maior na ausência. Disse a você o quanto o amava, pai? Estou ouvindo agora uma de minhas músicas favoritas. Not Going Home Anymore. Nunca mais voltar para casa. Meu pai. Papai. Um dia ele nunca mais voltou para casa. E eu de certa forma também não. Olha. Aquela foto. Aquele menino feliz. Ele não voltou para casa quando seu pai morreu. Um perpétuo estado de desamparo, solidão e orfandade. Mas o menino. Ele foi adiante mesmo caído, combateu o combate ainda que de joelho. .

Dedicado à memória de EMN

Homem não chora

16/05/2008

Vou tentar lembrar a frase de um sábio. Acho que era assim: as lágrimas dos fracos secam as minhas. Ele falava de como um homem deve se portar na adversidade. Como um homem, para resumir. Sem histeria feminina, sem se chacoalhar em desespero patético. Sem chorar.

Homem que é homem não chora.
Uma pequena digressão: aquele filósofo não desabou moralmente nem quando recebeu a sentença de morte. Foi condenado ao suicídio. Os amigos e a quase viúva ficaram consternados. O suicida compulsório consolou a todos antes de cortar as veias. Seus olhos não ficaram nem sequer úmidos, segundo relatos de testemunhas. Ele exortou os que o cercavam a mostrar força, cortou as veias e partiu para a história. Sêneca é o cara.

Há na natureza uma sabedoria que convém respeitar. Infelizmente, a natureza é cada vez menos levada em conta, como se vê no pequeno grande crime que as mulheres cometem ao destruir a golpes de cera o que meu amigo Juan Iglezias, numa coluna numa revista masculina, chamou de Triângulo Sagrado. A natureza embelezou a mulher que chora. A fragilidade, a suavidade feminina são destacadas quando o pranto toma a mulher.

A vontade que se tem é de ampará-la, de protegê-la em nossos braços viris do mundo cruel. Muitas vezes essa vontade ingênua é seguida de um impulso nada ingênuo de teor sexual. Mas até aí pode haver poesia: ao penetrarmos a chorona como que sagramos sua salvação. Nada mais pode atingi-la. Somos então uma espécie de heróis rígidos. Já não há razões para a mulher chorar. É uma cópula redentora. Libertadora. Sem muito esforço, ela passa da tristeza à alegria genuína da fêmea possuída e protegida.

Com o homem é o oposto. Ao chorar, ele se descompõe. Fisicamente fica feio. A palavra mais adequada é outra: horrível. Tenho a tese de que, se o chorão se olhasse no espelho no momento do colapso moral, o mundo teria um número imensamente maior de homens firmes diante da adversidade. A natureza, ao tornar quase repulsivo o macho em pranto, estava dizendo que homem não chora.

O chorão não inspira piedade, não inspira ternura. Nos homens, ele desperta uma mistura de tédio e desaprovação. Nas mulheres – e aqui me refiro às normais, não às malucas com vocação doentia para enfermeiras e psiquiatras-, ele desperta aversão.

Apanhemos de pé quando a vida, como acontece com tanta freqüência, nos golpear. Se cairmos, combatamos de joelhos. Nada de faniquitos. Nada de lágrimas em profusão descontrolada.

Isso não quer dizer que nós homens não somos sensíveis. Sentimos, sofremos às vezes terrivelmente quando perdemos uma mulher amada ou um amigo também amado. (Outro sábio disse lindamente que a morte de um amigo o atirou numa noite fria e escura. Montaigne, sobre La Boétie, aos interessados.) Quer dizer apenas que podemos e devemos ser firmes, másculos, perante as dificuldades, os reveses tão comuns da sorte. Devemos ser homens, para simplificar.

Se chorei? Mais do que devia, com certeza. E com certeza também não são os momentos de que lembro com maior satisfação. Refrear as lágrimas, um esforço tenaz que tenho empreendido, verdade que longe das metas desejadas, é uma atitude não apenas macha. É também um gesto de elevação espiritual.

Homem não chora

16/05/2008

Vou tentar lembrar a frase de um sábio. Acho que era assim: as lágrimas dos fracos secam as minhas. Ele falava de como um homem deve se portar na adversidade. Como um homem, para resumir. Sem histeria feminina, sem se chacoalhar em desespero patético. Sem chorar.

Homem que é homem não chora.
Uma pequena digressão: aquele filósofo não desabou moralmente nem quando recebeu a sentença de morte. Foi condenado ao suicídio. Os amigos e a quase viúva ficaram consternados. O suicida compulsório consolou a todos antes de cortar as veias. Seus olhos não ficaram nem sequer úmidos, segundo relatos de testemunhas. Ele exortou os que o cercavam a mostrar força, cortou as veias e partiu para a história. Sêneca é o cara.

Há na natureza uma sabedoria que convém respeitar. Infelizmente, a natureza é cada vez menos levada em conta, como se vê no pequeno grande crime que as mulheres cometem ao destruir a golpes de cera o que meu amigo Juan Iglezias, numa coluna numa revista masculina, chamou de Triângulo Sagrado. A natureza embelezou a mulher que chora. A fragilidade, a suavidade feminina são destacadas quando o pranto toma a mulher.

A vontade que se tem é de ampará-la, de protegê-la em nossos braços viris do mundo cruel. Muitas vezes essa vontade ingênua é seguida de um impulso nada ingênuo de teor sexual. Mas até aí pode haver poesia: ao penetrarmos a chorona como que sagramos sua salvação. Nada mais pode atingi-la. Somos então uma espécie de heróis rígidos. Já não há razões para a mulher chorar. É uma cópula redentora. Libertadora. Sem muito esforço, ela passa da tristeza à alegria genuína da fêmea possuída e protegida.

Com o homem é o oposto. Ao chorar, ele se descompõe. Fisicamente fica feio. A palavra mais adequada é outra: horrível. Tenho a tese de que, se o chorão se olhasse no espelho no momento do colapso moral, o mundo teria um número imensamente maior de homens firmes diante da adversidade. A natureza, ao tornar quase repulsivo o macho em pranto, estava dizendo que homem não chora.

O chorão não inspira piedade, não inspira ternura. Nos homens, ele desperta uma mistura de tédio e desaprovação. Nas mulheres – e aqui me refiro às normais, não às malucas com vocação doentia para enfermeiras e psiquiatras-, ele desperta aversão.

Apanhemos de pé quando a vida, como acontece com tanta freqüência, nos golpear. Se cairmos, combatamos de joelhos. Nada de faniquitos. Nada de lágrimas em profusão descontrolada.

Isso não quer dizer que nós homens não somos sensíveis. Sentimos, sofremos às vezes terrivelmente quando perdemos uma mulher amada ou um amigo também amado. (Outro sábio disse lindamente que a morte de um amigo o atirou numa noite fria e escura. Montaigne, sobre La Boétie, aos interessados.) Quer dizer apenas que podemos e devemos ser firmes, másculos, perante as dificuldades, os reveses tão comuns da sorte. Devemos ser homens, para simplificar.

Se chorei? Mais do que devia, com certeza. E com certeza também não são os momentos de que lembro com maior satisfação. Refrear as lágrimas, um esforço tenaz que tenho empreendido, verdade que longe das metas desejadas, é uma atitude não apenas macha. É também um gesto de elevação espiritual.

Heroísmo por trás da maquiagem

14/05/2008

Este é o título de um capítulo do mais recente livro de um historiador inglês de que gosto muito, Paul Johnson. O livro se chama Heróis, e PJ fala de personagens tão diferentes como
Churchill e Mae West. Mae West foi uma das mais brilhantes e bem-sucedidas comediantes de todos os tempos, e ao ver PJ falar dela me lembrei de um texto no qual afirmei que mulheres não são engraçadas.

Bem, hoje estou convicto de que estava … bem, estava certo. Mae West é uma poderosa exceção. Ela tinha um código de conduta extraordinariamente sábio. Transcrevo-o abaixo, e
secretamente lamento que raras, raríssimas mulheres tenham o senso de humor de Mae West.

Coisas que nunca faço

1. Tirar o homem de outra mulher. Pelo menos intencionalmente, quero dizer, embora no amor e na guerra valha tudo, e não seja pecado.
2. Ser outra coisa que não eu mesma o tempo todo, a não ser no palco ou na tela, pois é aí que começa a atuação.
3. Jamais cozinho, costuro, lavo pratos, descasco batata, como cebola ou rôo as unhas.
4. Usar meias de algodão branco ou entrar em um campo de nudistas
5. Jamais vou gostar de ópera, do Número Treze, cantar músicas tirolesas, espaguete frio, ratos, lesmas, homens que raspam o pescoço ou banana madura demais.
6. Preocupar-me com pessoas que assobiam no camarim ou passam cheque sem fundo.
7. Fazer papel de mãe, papéis tristes ou de esposa virtuosa, traída ou não. Tenho pena das mulheres fracas, boas ou más, mas não consigo gostar delas. A mulher deve ser forte na bondade e na maldade.
8. Ficar doida por música clássica, sanduíche, fumaça de charuto, lugares que cheiram a hospital e esmalte de unha preto.
9. Ficar excitada com boates, pontes retráteis, dança de leque, meias no tornozelos, a Bolsa de Valores, badminton ou macetes para aumentar o busto.
10. Morrer de emoção com orquídeas, cartas de amor anônimas, pastas de postais de suvenir, terremotos, braceletes de escrava ou cama de colchão duro.
11. Incomodar-me com prestamistas escoceses ou rapazes que ciciam.
12. Acreditar o pior de alguém sem prova completa, tampouco acreditarei que é inútil lutar contra a sorte – a falsa!
13. Andar quando posso me sentar, ou me sentar quando posso me deitar. Acredito em poupar a energia – para coisas importantes.
14. Escrever um conto sem sofisticação, porque acho que inocência não é o que a inocência faz.
15. Casar-me com um homem bonito demais, um homem que bebe demais ou não segura a bebida como um cavalheiro, um homem fácil de obter ou facilmente levado à tentação – a menos que seja eu quem o leve.

Trair a si próprio é a mais abjeta das traições

10/05/2008

Não lembro onde li, outro dia, uma relação de casais marcantes das últimas décadas. John e Yoko estavam lá. Sempre agarrados. Até no estúdio durante as gravações dos Beatles, para total desgosto de Paul, George e Ringo. Nos ensaios da banda, que eram o momento de maior intimidade dos quatro, um espaço sagrado invadido por Yoko em sua sem-cerimônia de artista plástica vanguardistamente fracassada, Paul detestava vê-la encostada em seu amado amplificador. Lol. (Lá vou eu para mais uma de minhas intermináveis digressões: acho linda a expressão usada para determinar o período em que Lennon esteve separado de Yoko. Lost Weekend. Fim de Semana Perdido. Um fim de semana que, na realidade, durou mais de um ano, ao longo do qual Lennon viveu em Los Angeles ao lado de velhos amigos em históricas bebedeiras e brigas de bar e na companhia de uma jovem gostosa de ascendência chinesa, May. May trabalhava com eles, e dizem que Yoko a mandou a Los Angeles para dar sexo bom a John, mas mais que tudo para vigiá-lo.)

Fim da digressão. Fora aquela interrupção, ou talvez mesmo no decorrer dela, John e Yoko pareceram sempre apaixonados. Muitas canções de John tinham Yoko na letra. Eles apareciam até como parceiros em certas músicas. Em alguns discos de John, a gritaria desafinada de Yoko dividia espaço com a voz sublimemente desesperada, incomparavelmente sofrida de John. Lembro-me de uma foto do casal célebre, feita por Annie Leibowitz, a maravilhosa fotógrafa americana, em que John apareceu nu e em pose fetal.

E então me ocorreu o seguinte: John e Yoko são o pior modelo de casal que já apareceu desde Adão e Eva. Exagerei? Desculpem. É meu jeito superlativo de ser. Mesmo assim, repito: eles são um péssimo exemplo. O pior que conheço. Vocês aceitam mais uma digressão? Existe uma crônica do grande Rubem Braga em que ele fala de um casal de velhinhos que passeava sempre de mãos dadas, para admiração comovida dos circunstantes. Diz Rubem: ele a detestava, ela o desprezava. (Pode ser também o contrário. Estou citando de orelha. Aliás: nem sei qual foi o sentido dessa citação. Aceito ajuda.)

De volta a John e Yoko. O que houve ali, na minha opinião, foi um lamentável caso de anulação do indivíduo. John se anulou quando se juntou a Yoko. Ele deixou de ser John Lennon para ser a metade de um casal. O indivíduo morreu. Em algumas ocasiões, ele assinou (ou eles assinaram) Lennono, a junção esquisita dos dois sobrenomes. E num disco o rosto de ambos se fundiu e o que dali resultou jamais poderia ser classificado de belo ou mesmo feliz.

Tio Fabio, um falecido homem sábio do interior, Deus o tenha, uma vez me deu um livro de Aristóteles. Confesso que tremi diante da possibilidade de enfrentar as páginas intensamente cerebrais do grego e depois ser sabatinado por Tio Fabio e suas perguntas sagazes. Fiquei mais aliviado quando vi que havia uma página assinalada e, nela, uma frase sublinhada. Era mais ou menos o seguinte: a virtude está no meio. Tudo que Tio Fabio queria que eu soubesse de Aristóteles se resumia naquela sentença.

Também nas relações amorosas acredito que a virtude esteja no meio. Entregar-se completamente a alguém, como fez John Lennon, é um erro tão espetacular quanto não se entregar nada. Nem dar tudo, nem dar nada. A virtude aristotélica é inspiradoramente brilhante. Um casal deve dividir alegrias, angústias, posses, orgasmos e até peixinhos no aquário. Mas ninguém deve renunciar a ser o que é. Antes de sermos maridos, namorados, concubinos ou o que mais for, somos nós mesmos. Com nossos pequenos gostos, nosso pequenos (ou grandes) vícios e virtudes. Quando deixamos de ser nós mesmos para agradar alguém, não somos mais nada. .

Arrisco uma última (juro) digressão. O que teria acontecido com John se ele não se anulasse diante de uma mulher? Teriam os Beatles sobrevivido? Me ocorre a imagem grisalha dos quatro garotos ingenuamente bonitos de Liverpool tocando, neste início de milênio, um rock cheio de rugas e gritando ié-ié-ié. Não, não, não. A morte dos Beatles talvez tenha sido a contribuição milionária de Yoko. A recompensa suprema pela anulação de John. Eu ia encerrar meu texto amaldiçoando Yoko. Mas termino abençoando-a, e cantando baixinho, estranhamente comovido, strawberry fields forever.

Depois do adeus

06/05/2008

EU CONFESSO. NÃO sou amigo de ex-namoradas. Ao contrário de outros caras, não faço o menor esforço para manter a amizade de quem saiu da minha cama, dos meus pensamentos e da minha agenda. Não é por raiva, não é por mágoa, não é por revanche. É simplesmente por desinteresse. O elo que nos uniu foi rompido na separação. Aquela vontade de estar junto, de compartilhar as pequenas coisas do cotidiano, de trocar um olhar furtivo e cúmplice no meio da multidão perdeu-se. Não sobra base nenhuma em cima da qual construir uma relação de amizade. Quem já foi tudo para alguém é melhor que se transforme em nada, com a ruptura, e não em pouco.
Não estou dizendo que se deva ser rude, tosco, bruto. Não advogo aqui que se vire o rosto para o lado num reencontro fortuito. Ou que se bata o telefone na cara ao ouvir aquela voz cujo timbre, poder e influência tiveram tanto significado para você. Também não prego que se lancem calúnias sobre ela e, embora seja grande a tentação, sobre ele, o novo homem. (Porque o novo homem é inapelavelmente um perfeito idiota, um canalha absoluto.) E acho uma tolice, na separação, pegar por birra, e só por birra, os livros e os discos que você sabe que são os prediletos dela. Tudo isso seriam provas de um espírito fraco, vingativo. O que recomendo, e pratico, é a indiferença. A indiferença pode ser natural, o que é a melhor opção. Ou pode ser também cultivada, caso a namorada perdida continue a ter presença em seus pensamentos. O que se deve evitar, enfim, é a continuação empobrecida, sem sentido e quase sempre hipócrita de uma relação que se acabou.

Por mais que se diga e que se finja que não, um homem só é genuinamente amigo de outro homem. O pequeno grande código da amizade não mistura homens e mulheres. Imagine dois amigos num bar, falando de futebol. Mais especificamente, do soberbo futebol que o Corinthians tem praticado nos últimos tempos. A descrição da série endiabrada de dribles dos atacantes corinthianos é bruscamente interrompida quando uma mulher gostosa passa diante dos dois amigos. Ambos olham para ela, depois um para o outro, e então vem um sorriso que diz e resume tudo. E enfim se retoma a conversa paralisada: isso é o retrato da amizade entre dois caras. É impossível reproduzir essa situação quando se trata de um homem e uma mulher. Logo, não há chance de amizade. Eu citei uma situação clássica. Há dezenas de outras, que vocês conhecem tão bem quanto eu. E sei que o inverso é também verdadeiro: uma mulher só é realmente amiga de outra mulher. (Embora a inveja e a rivalidade entre as mulheres, em geral num grau acentuadamente maior do que o que se verifica entre nós, atrapalhem muitas amizades. Mas isso é problema delas, não nosso.)

Uma relação entre um homem e uma mulher pode ser divina. Uma das maiores bênçãos que os Deuses concederam ao homem é estar dentro da mulher amada, unidos no corpo, unidos na alma, num lapso de tempo que, embora precário, se confunde com a eternidade. Uma dupla, metade masculina e metade feminina, pode formar um universo de enlevo, êxtase e inspiração. Mas a amizade fica de fora. Sejamos objetivos: o único amigo genuíno que uma mulher pode encontrar no gênero masculino é, até para reproduzir a situação clássica masculina, aquele que há de compartilhar com ela um olhar cúmplice de admiração quando irromper um homem considerado bonito.

Mulherzinhas

02/05/2008

Pedro olhou para o relógio e viu que estava quase uma hora atrasado. Não ficou exatamente preocupado. Pontualidade era uma virtude que ele estava longe de ter conquistado, e de resto as duas meninas que ele ia encontrar no Pirassanduba se entretinham muito bem sozinhas. Eram amigas, realmente amigas, daquelas que se telefonam de madrugada para dividir histórias de amor ou de desilusão, um dia de triunfo na redação do jornal ou de derrota para o chefe careta que insistia em mexer no texto jovem e irreverente de ambas. As duas, quando juntas, se olhavam com fixidez, como se nada lhes importasse além delas e do pequeno mundo jornalístico ao qual pertenciam. Poderiam ser tomadas como namoradas num primeiro olhar, lésbicas que por serem gostosas provocam nos homens um sentimento de perda e impotência, mas um segundo olhar revelava com inteireza duas fêmeas incapazes de ter interesse amoroso em outras fêmeas. Encaixe para elas era possível apenas com homens. Eram heterossexuais convictas, quase fanáticas, embora tivessem muitos amigos e amigas gays.

Era uma noite de fevereiro, daquelas em que as zonas boêmias de São Paulo parecem estar numa festa sem hora para acabar. Pedro, a caminho do bar em que as duas o esperavam, pensou no quanto amava São Paulo e seu caos majestoso e cosmopolita, diversidade gloriosa e bela de suas mulheres. Pedro nascera em São Paulo, e decidira morrer em São Paulo. Comprara um espaço no Getsemani, não por morbidez, mas para evitar surpresas póstumas desagradáveis. Quando estava fora de São Paulo, ansiava por voltar para a cidade como um garoto perdido num lugar desconhecido anseia por encontrar com seus olhos aflitos os da mãe.

Pedro, ao chegar, pensou por um momento se não era melhor retroceder e as deixar entregues uma à outra, tão animadas pareciam em sua conversa de mulherzinhas. Pamela, Pam, usava um vestido curto e colorido, “klimtiano”, como ela dizia. Pam pintava nas poucas horas vagas que a rotina dura de uma redação libera, e Klimt era sua maior inspiração. Fizera balé muitos anos, e gostava de dançar Madonna exatamente do jeito que Madonna dança. Uma amiga fotógrafa fizera fotos em que ela aparecia provocativa, lascivamente bonita, e Pam revia suas imagens nuas sempre que se sentia insegura sobre sua beleza. Pedro riu sozinho ao pensar na Pam da sanduicheria e na Pam de The Office. Via sempre The Office antes de dormir para relaxar e melhorar as chances de um sono bem-humorado. Pam, a de The Office, ganhando o prêmio anual do seu escritório pelos tênis mais brancos da temporada, e completamente bêbada acenar sua estatueta e fazer agradecimentos como se fosse um Oscar, esta sua cena favorita de Pam.

Fernanda, Fê, usava jeans e camiseta branca básica. Viera a São Paulo de Ribeirão, onde morava fazia algum tempo. Ao subir no ônibus vira um velho cantor, e temeu que ele se sentasse a seu lado no ônibus. Sentou-se. O cantor estava alto, e logo caíra num torpor etílico que levou sua cabeça grisalha a desabar nos ombros acolhedores dela. Fê, como Pam, era morena e atraente, e ainda assim sonhava com uma lipo que lhe tirasse rapidamente alguns quilos que ela tinha preguiça de eliminar com ginástica rotineira. Tinha um blogue literário cheio de comentários.

As jornalistas de minha geração eram menos vaidosas, refletiu Pedro. Quase todas pareciam ter raiva da beleza, como se olhar para o espelho e usar um batom fosse um sinal desprezível de frivolidade, e seu desejo maior não era sexual, mas sim político. Derrubar a burguesia. Pam e Fê queriam ouvir a opinião de Pedro sobre um projeto literário. Queriam escrever em conjunto um romance, em forma de cartas, sobre a mulher de 30 anos. Seu mundo, seus sonhos e ilusões, suas fantasias e inseguranças. Eram mulheres formadas sob a inspiração de Carrie e suas amigas de Sex and The City, fêmeas sitiadas por homens egoístas e avessos a qualquer compromisso sério. Influenciadas por histórias que não resistem a uma escova de dentes no gabinete do banheiro.

Pedro gostou. Achou a idéia original, e se lembrou de alguns romances clássicos escritos na forma de diálogos, dos quais o que mais lhe agradava era Relações Perigosas. Tinham escrito alguns capítulos, e passaram a Pedro para que ele os analisasse. Pedro folheou as páginas, e sorriu ao ver na última delas uma nota de agradecimento de Fernanda em sua letra de normalista. “Obrigado por ter chegado aqui”, estava escrito. Era um gesto típico, delicado e surpreendente, de mulherzinhas.

Tomaram os três algumas garrafas de Stella, e comeram sanduíches. Pedro escolheu um Pepe Legal, e ficou satisfeito. Pedro não podia ficar muito tempo. Tinha um outro compromisso, um show de sua banda favorita paulistana em outro bar ali na Vila. Terminou o sanduíche, pegou as primeiras páginas do romance de Pam e Fê e aceitou, sem insistir muito, que elas ficassem com a conta. A vida de um jornalista frilancer como ele não era tão fácil assim financeiramente. Pam, com seu vestido klimtiano, beijou-o involuntariamente perto dos lábios, e ele ficou momentaneamente perturbado. Fê deu-lhe um sorriso confiante de jovem escritora que acredita que seus leitores haverão de aparecer um dia, nem que seja daqui a 25 anos.

Pedro deu alguns passos em direção à escuridão paulistana, e depois se virou para um último olhar para as duas amigas. Elas conversavam alegremente. Pedro parecia ter sido apenas um parêntese no encontro de duas amigas que se amam, e que são capazes de ligar uma para a outra alta madrugada para falar de uma primeira saída incrível com um cara legal. Eram bonitas, divertidas, espirituosas, riam do mundo e uma da outra. Pedro sorriu, como se tivesse ouvido a melhor tirada de uma delas, e depois retomou sua marcha desajeitada rumo à escuridão da cidade que ele tanto amava, um vulto solitário como os de Hopper, o grande retratista da solidão americana, errando pelas ruas da São Paulo em que ele nascera, crescera, sonhara, se desiludira e haveria de morrer.