Mais um livro. Mais um livro que me marcou na juventude. Engraçado. Os livros que realmente entram em nós como cicatrizes são os juventude. Anos de formação da alma, anos em que nos tornamos o que somos e seremos até o último passo nesta terra ao mesmo tempo tão fascinante e tão cruel. Estou falando de Por Quem os Sinos Dobram, de Hemingway. E lá vou eu para mais uma de minhas digressões. Há um filme lindo baseado no romance de Hemingway, e a mulher que faz o papel principal é Ingrid Bergman, a maior beleza angélica da história do cinema. Uma vez escrevi, num momento de arrogância iconoclasta, que quem tem energia intelectual lê o livro, e os preguiçosos mentais vêem os filmes baseados no livro. Provocação boba, reconheço. Tanto o romance como filme Por Quem os Sinos Dobram são sublimes, cada qual do seu jeito.
Mas o que eu queria é falar de uma cena do livro. Robert Jordan, o protagonista, é um americano que vai combater voluntariamente e romanticamente, nos anos 30, na guerra civil espanhola. Havia o lado dos idealistas, e contra eles estavam as forças do mal, ou assim pareciam, gente ligada às idéias e práticas fascistas. Jordan, portanto, era um mocinho. Me permita dizer mais uma vez: Robert Jordan é uma das figuras literárias que mais amei, e mais invejei. Quis ser ele, ou como ele, a vida toda.
Jordan, na Espanha, recebe uma missão vital: dinamitar uma ponte. Na preparação da tarefa conhece uma moça espanhola simples, ingênua, jovem, Maria, que tinha um papel secundário no grupo que explodiria a ponte. O idealista cosmopolita e a nativa sonhadora se apaixonam. Uma velha cigana, que era uma espécie de protetora de Maria, diz a ela uma hora uma coisa que jamais esqueci, e sobre a qual escrevi aqui mesmo no blogue. Maria parecia querer entender o que estava sentindo. A terra treme a nossos pés apenas três vezes na vida, disse a cigana a Maria. Três. Não mais que isso. Robert Jordan estava fazendo a terra tremer pela primeira vez a Maria. Num mundo em que os amores parecem múltiplos e descartáveis, me comoverá para sempre a reflexão da cigana. Por mais parceiros que tenhamos, por mais gemidos que ouçamos ou emitamos de diferentes pessoas, apenas três vezes a terra tremerá a nossos pés.
Mas eu queria falar de Jordan e o seu gesto que sempre sonhei, de alguma forma, repetir. O ataque à ponte não dá certo. Os inimigos começam a perseguir Jordan e seus companheiros, e vão se aproximando. Jordan está ferido, e não consegue se movimentar com a rapidez necessária para escapar. Então ele toma uma decisão. Vai esperar os perseguidores, e sozinho os encarará. Seu destino está selado, mas ele sabe que dará aos demais um tempo precioso para escapar. Maria se revolta, diz que jamais aceitará este sacrifício, enquanto os demais a pressionam a seguir adiante. Já dá para ouvir os tiros. É Jordan quem a convence a partir. Diz ele, num dos pontos mais altos da prosa gigantesca de Ernest Hemingway: “Viverei em você, serei feliz em sua felicidade”.
Eu mesmo. Na hora da despedida, tenho agora a chance de repetir as palavras de Jordan, e me sinto um privilegiado por isso. Vai, anda, minha pequena bailarina de pezinhos mágicos e deslizantes. Dança a dança da felicidade. Vai ser feliz.
Serei feliz em sua felicidade.