Pedro apenas balançou a cabeça. O melhor jogador de pôquer, dissera Serena. O melhor, o melhor. Ele sempre quisera ser o melhor em tudo. O melhor jogador de futebol até que uma perna espatifada encerrasse a promessa de uma grande carreira aos 15 anos. O melhor jornalista de sua geração. Fizera uma carreira rápida e vitoriosa. Uma vez um empresário lhe pedira que fizesse um trabalho de redação com o seguinte intróito: “Chamei você porque você, segundo informações que cruzei, é o melhor texto do Brasil”.
O melhor, o melhor.
Mas agora, aos 39 anos, via-se apenas como um espetacular fracassado.
Não era o lançamento de Nunca É Tempo Demais que o afligia naquela noite. Não era também a iminência da mudança solitária para Portugal. Era a perspectiva de um confronto, no lançamento do livro, com quem mais o fizera feliz e mais o fizera infeliz. Com a mulher que, ao sair de uma vida, destruÃra todas as mentiras que ele construÃra para si. O vitorioso. O homem que jamais hesitava. O homem que tinha o controle de tudo.
Sobrara o fracassado que não conseguira reter aquilo que mais amara na vida. Ele não sabia se gostaria de rever Rina.
Estavam deitados na cama de um hotel no interior de São Paulo. Ela dissera a seu marido que ia fazer uma reportagem sobre o patrimônio de Quércia em Pedregulho. Ele dissera a sua mulher que ia entrevistar um ministro em BrasÃlia. As mentiras que contavam os ajudariam a viabilizar sua vida junta, mas depois teriam o poder de destruÃ-la. Pois jamais confiariam inteiramente um no outro. Quando, numa longa viagem que fez a serviço do jornal, ela não lhe deixou o telefone do hotel, ele logo viu a repetição do artifÃcio que ela sempre aplicara no marido. Ela sempre negou as acusações, mas nem no dia em que romperam irremediavelmente ele acreditou na sua inocência. Mas tudo isso estava muito distante naquela noite interiorana. Ela apanhara um baralho na recepção e pedira que lhe ensinasse a jogar pôquer. “Olha essa carta”, disse ele com um ás nas mãos. “É a melhor carta que pode aparecer pra você. Agora, à s vezes um determinado olhar pode levar os outros jogadores a acreditar que você tenha várias cartas como essa em que você tenha nenhuma.” “Muito complicado”, disse ela. “Buraco é mais simples. A gente pode simplesmente roubar na contagem. Como a minha mãe. E tem mais uma coisa: eu não suportaria perder dinheiro”. Ela sempre o considerara muito displicente em relação ao dinheiro, herança de uma mãe que passara fome na infância e bombardeara a filha com noções severÃssimas sobre a importância de cada centavo. Antes de abandonar o baralho naquele quarto de hotel no interior de São Paulo para entrar nela mais uma vez, ocorreu-lhe que fora o pôquer mais fabuloso que já jogara ou jogaria no futuro.
Pedro estava diante de seu analista, Gabriel. Gabriel tinha os cabelos longos apanhados num rabo de cavalo. Seus ares remetiam aos anos 60. Em certos momentos parecia um hippie retirado de uma foto de Woodstock e transportado para aquela saleta modesta que lhe servia de consultório na Vila Madalena. Uma mesa, duas cadeiras ordinárias, alguns quadros baratos pendurados na parede. Gabriel acreditava nos astros e fazia os mapas astrais de seus clientes, e Pedro considerava todas essas bobagens como mais uma demonstração de que ninguém é perfeito. Gabriel tinha um bom ouvido e falava a Pedro coisas que ninguém antes falara. Era o suficiente.
Mais uma vez, o assunto era Rina. Desde que ela o deixara, Pedro dera para falar compulsivamente nela. Era como se a ausência fÃsica fosse, de certa forma, compensada pelas palavras. Pedro observara o efeito de suas observações sobre Gabriel. Ele parecia também fascinado por Rina, como aquele detetive que se apaixona por um retrato na parede, em Laura, a partir dos depoimentos que ouve.
“Durante muito tempo me atormentei com a idéia de que era um devedor. Ela tinha me oferecido tudo. O fim do casamento e até a distância dos filhos. E eu, que dei? Graham Greene, John Updike? Ela me ofereceu vida real. Tudo o que eu dei foi literatura. A frase, aliás, é dela”.
“Você deu o que podia naquele instante. E você sabe muito bem que não foi só literatura. Acho que as pessoas acabam fazendo as coisas certas mesmo quando julgam estar erradas. Naquele momento em que você me falava na hipótese de deixar sua famÃlia para ficar com ela, você estava preso por um laço que fora posto fazia muito tempo. Não teria funcionado. Você teria tentado ficar com ela, mas aquele velho laço acabaria cobrando seu preço. Depois, quando você enfim se livrou do laço, ela já não queria você. Que fazer? É a vida como ela é. Você tinha que fazer as coisas a seu modo. Por etapas. Primeiro tirar o laço, depois renovar sua vida. Esse é o seu jeito. Mas não era o jeito dela. Você não fracassou, ao contrário do que possa estar sentindo ainda hoje. Você triunfou. E ela também. Pena, talvez, que não tenham triunfado juntos.”
“Como falar em triunfo se eu perdi o que mais quis e amei na vida? Não, não tente me confortar com palavras doces. Nosso único triunfo foi termos sobrevivido um ao outro. Nós éramos nefastos um para o outro. Lembra aquele filme, A Mulher do Lado?“
“Claro. Meu preferido do Truffaut. O Depardieu jovem e magrinho, antes de se transformar numa versão moderna e patética do Obelix”.
“Pois é. O homem fala para a mulher exatamente isso: nós somos nefastos um para o outro. Bem, como você lembra, eles não sobreviveram a eles mesmos. Ela o atrai para uma última cópula, mata-o e depois se mata. Jamais esqueci a moral da história: nem com você, nem sem você”.
“Nem com a Rina, nem sem a Rina, você quer dizer”.
“É. Num certo instante tive a convicção de que não sobreviverÃamos a nós mesmos. Veja bem, eu quis matá-la. Ela estava viajando e eu estava convencido (ainda estou) de que ela me enganava. Fiquei desvairado e, naquele momento, compreendi, absolvi e de alguma forma até aplaudi todos os amantes assassinos desde Otelo. Eu andei uns dias com uma faca no carro para matá-la. Até hoje, quando vejo outra vez a faca, me pergunto se não deveria tê-la enfiado naqueles seios tão convidativos, tão disponÃveis. E ela também admitiu claramente que uma vez teria me matado se pudesse. Se você visse o rosto dela nessa ocasião, não duvidaria”.
Rina estava separada do marido. Ele descobrira uma carta que Pedro enviara a ela. Rina aproveitou para dizer que seu casamento falira. Naquela noite, uma segunda-feira que os amantes depois chamariam de Bloody Monday, ela esperava Pedro. Ele decidira beber antes com os amigos e se atrasara uma, duas, três horas. Quando bateu à porta, encontrou uma mulher furiosa, num exÃguo vestido amarelo. Ela lhe bateu, e ao erguer o braço ele viu os pêlos nas axilas que sempre o tinham perturbado tanto por dar a ela um ar de selvageria sexual. Então ela o insultou no tom mais barulhento que pôde e depois o expulsou de casa. Naquela noite, ela decidiu tentar retomar o casamento com o marido. E também se libertar de Pedro. Libertou-se, algum tempo mais tarde, ao iniciar um romance com o editor de seu jornal, que Pedro certa vez disse a Rina ser “um idiota que só vai poder puxá-la para trás”. Era irrelevante. Até porque seu papel não era puxá-la para frente, como Pedro, tão convicto em sua arrogância petrificada, acreditava ter feito. Seu papel era libertá-la de Pedro. E também de seu primeiro marido e de todo um mundo velho ao qual ela acabara acorrentada.
Era um lançamento de livro como tantos outros. Pessoas muito mais interessadas em beber e comer de graça do que no livro que estava sendo lançado. Pedro rejeitara o quanto pudera a idéia, mas o editor o convencera. “No Brasil, você sabe melhor que eu, é muito difÃcil vender livros”, disse o editor. “Sem a agitação que sempre traz uma festa de la
nçamento, é impossÃvel”. Uma antiga amiga o pegou a certa altura pelo braço e o levou para um canto. “É a nossa história, não é? Já comprei o meu exemplar, mas só vou ler se for a nossa história”.Pedro balançou a cabeça. “Não perca seu tempo”.
Nesse instante Rina entrou na sala e a velha amiga entendeu tudo. Pedro, perturbado como um adolescente apaixonado diante da aparição de uma namorada remota, derrubou o uÃsque que estava em seu copo.
“Mais uma vez perdi para ela, não foi?”
“Talvez não tenha sido uma grande idéia tentar competir com ela”.
Ele pediu licença e foi receber Rina. Rina, ele logo notou, estava com um vestido preto que ele lhe comprara na Benetton da Quinta Avenida. Era a primeira vez que a via vestida com ele.
“Detestei o livro”, ela disse. Já tratara de apanhar um cálice de vinho.
“Bem, alguma coisa temos ainda em comum. Reli o romance ontem e também detestei”.
“Você falsificou tudo. Colocou, como sempre, as falas inteligentes em você e as tolas em mim”.
“Talvez tenha sido a maneira de compensar a inferioridade que eu sentia diante de você na vida real”.
“E aquele final feliz. É patético. Eu lutei tanto por um final feliz e você só conseguiu me oferecê-lo num livro”.
“Confesso que hesitei, mas depois achei que devia a nós aquele final feliz. Mesmo ao preço de resenhas me chamando de açucarado. A vida não foi muito generosa conosco. Por que a ficção não poderia ser?”
Ela tomou todo o vinho e apanhou outro cálice. Era como se estivesse se preparando para uma jornada dura.
“Você soube que eu casei de novo?”
Claro que soubera. Berenice, uma amiga comum, lhe contara. Pedro sorriu ao lembrar a maneira cautelosa como Berê lhe dera a notÃcia. Mais ou menos como se avisa alguém que uma pessoa querida morreu.
“Imaginei que você fosse me convidar para padrinho. Piada”.
“Você não vai me perguntar se eu estou feliz?”.
“Você é feliz?”
“Muito. Com o meu marido eu tenho todos aqueles orgasmos que eu fingia ter com você”.
“Antes ou depois daquelas fabulosas conversas sobre futebol?”
Seu novo marido fora comentarista esportivo. Ela tentou jogar vinho no rosto de Pedro, mas o copo estava vazio.
“Seu grosseiro, seu arrogante. Você se acha melhor que todo mundo, não é?”
Ele pensara em responder que talvez tivesse se achado o melhor até conhecê-la. Depois se considerara um fracassado irremediável. Mas aquela discussão já o exaurira.
“Eu queria tanto não ter conhecido você. Fiquei tão feliz quando me disseram que você ia embora para Portugal. Me fala que é verdade, me fala que é verdade”.
Sim. Dois dias depois ele embarcaria para Portugal. Aparecera uma oportunidade profissional e ele não hesitara. A mudança era como o sÃmbolo de uma nova vida. Ia sozinho. Decidira que a solidão era indispensável pelo menos para o inÃcio do recomeço.
E então ele, movido por uma súbita repulsa a mais essa farsa que representavam no que era talvez o último encontro em muitos anos, a abraçou como jamais a abraçara em público. Com força, com paixão. Todo mundo estranhou, mas Pedro não se importou. Rina primeiro tentou se libertar do abraço, depois como que capitulou e retribuiu o abraço com a mesma intensidade.
“Detesto Portugal, detesto Portugal”, ela disse com a mesma convicção estrÃdula e lacrimosa com que tantas vezes dissera detestar Pedro. “Talvez houvesse uma esperança para nós, em algum outro tempo, em alguma outra situação. Mas Portugal significa nunca mais. Nunca mais.”
“Meu Deus, parece que você quer que eu repita o trecho que deu o tÃtulo do meu livro. Lembra? Numa despedida, o rapaz lembra o final de Shane. A mulher apaixonada pergunta: ‘Quer dizer que nunca mais?’ E o mocinho responde: ‘Never is a long time’. Nunca é tempo demais.”
E então ela se libertou dos seus braços e saiu correndo.
“Literatura, literatura. Você sempre vai me oferecer literatura. Você é uma fraude.”
Não era a despedida que ele imaginara, mas a vida como ela é não permite aeroportos brumosos, um avião de turbinas ligadas, alguém indo e alguém ficando, e atrás de tudo a melodia merencória daquela música tocada por Sam.
E de resto ela estava certa.
Ele era uma fraude.
A maior fraude desde os dinossauros.
Encheu mais um copo de uÃsque, secou-o de um gole e, sem que ninguém percebesse, se retirou para a solidão de seu apartamento. No caos de seus pensamentos embriagados, encontrou forças para gritar para ninguém, antes de desabar no tapete da sala. “Ela sempre esteve certa, ela sempre esteve certa.”
Estavam num quarto do Over, o motel onde tudo se iniciara e agora tudo se acabava. Tinham acabado de fazer amor, uma expressão que ele sempre abominara. Preferia copular. Não, já não era a mesma coisa. A chama que sempre flamejara com fúria sumira. Ele, depois de cinco anos, a percebera distante. A distância que vira nela o fizera afastar-se também. Era a última vez. Um certo momento ele pareceu ver, ali naquele mesmo quarto, o casal tão cheio de vida, fé e paixão de cinco anos antes. Ela tinha tirado a roupa, naquela primeira vez, e ele parecia não saber o que fazer. “Você não vem?”, perguntou ela. Não foi uma primeira vez gloriosa, mas depois viriam tais e tantas glórias, e tais e tantas misérias, que tudo o que acontecera antes para cada um dos dois tornou-se irrelevante como um tÃquete já usado.
“Me diz a coisa mais bonita que você já disse a alguém”, pediu ele no instante da separação. “Você é o homem da minha vida. Uma vez perguntaram para a Tônia Carreiro sobre seu romance com o Rubem Braga. ‘ Valeu cem anos’, ela respondeu. O nosso também. Cem anos”. Quando ela saiu do carro dele para nunca mais, ele ainda a chamou uma última vez.
“Me beija. Me beija por toda uma vida”.
E então eles se beijaram por toda uma vida.