Archive for Dezembro, 2007

A dose mínima de sofrimento necessário

31/12/2007

Quase dez da noite de 31 de dezembro, e o ano se vai indo. Barulho, e o som distante do mar de Itaparica. Uma brisa quente, e as páginas percorridas do livro que dei a mim mesmo de aniversário, a biografia dos Beatles por Bob Spitz. Pera. Presente de aniversário? Esqueci. Presente de Natal. “Esqueceu não, você errou”, diz a pequena proustiana. Ela sublinha errou com alguma satisfação. Bem. Sabia que Lennon decidira se tornar músico ao ouvir Elvis. The Pelvis. Não sabia exatamente que música. I Forgot do Remember to Forget. Eis o nome. Gosto do jogo das palavras. Esqueci de lembrar de esquecer. Como o jovem Lennon, ali na distante e portuária Liverpoool, poderia resistir a uma música com um título desses, e na voz soberbamente inovadora de Elvis?
E então verifico a hora, e vejo que o ano se vai acabando, e lembro fugazmente que perdi a final de um torneio de tênis de mesa no hotel agora à tarde, e a vitória estava em mim mas se foi, e eu ia me irritar comigo mas … mas me lembrei de lembrar do que disse Krishna a Arjuna na iminência de uma guerra colossal diante da qual Arjuna hesitava porque do outro lado estavam parentes (alguns deles usurpadores, é verdade) e amigos queridos. Palavras do mestre Krishna ao guerreiro Arjuna:o que importa é a luta, o esforço, a intenção, e não o resultado.
E então me ocorre que gostaria de desejar alguma coisa legal a vocês antes que 2007 se encerre. Numa época me inclinei pelo budismo. Depois me afastei. Sou ocidental demais para uma jornada longa budista. O incenso pode às vezes me confortar, mas também pode me incomodar. Mas aprendi a respeitar e admirar alguns conceitos. Por exemplo, o da impermanência. Nada fica, nada dura. Gostemos ou não.
E jamais, mesmo longe do budismo, neguei a verdade fundamental dos budistas: o sofrimento está na essência do ser humano. Todos sofremos, e paradoxalmente a dor universal mitiga a nossa própria. Basta olharmos um pouco mais para a angústia alheia e um pouco menos para a nossa.
Considerado o princípio vital do budismo, sei lá, eu aqui sob a brisa quente baiana, as luzes de Salvador no horizonte, sob a inspiração talvez dos orixás, e com certeza sob a guarda generosa de iemanjá, eu aqui desejo a todos vocês a dose mínima necessária de sofrimento para 2008. Lol.

O melhor gemido fajuto da história

28/12/2007

Um dos presentes de Natal de que mais gostei foi um disco gravado música a música na raça. Falo mais adiante. Também me encantou o dvd The Last Waltz, a Última Valsa. Scorcese, jovem, filmou em 1976 o último concerto do The Band, e é um tributo sublime não apenas ao conjunto mas à música. Eram cinco os caras do The Band, e dois deles estão mortos. Vejo Rick Danko jovem no baixo, ao lado do grande guitarrista Robert Robertson, uma franja meio que ao estilo beatle de 1965. Ele é um jovem sorridente, bonito, e ele olha com admiração tocante para Bob Dylan quando Dylan aparece no palco para cantar Forever Young. Gosto dessa imagem de Rick, morto anos depois de câncer. Em geral a imagem que fica de uma personalidade é a pior. O homem ou a mulher em seu momento final, em ruínas quase sempre. A imagem oficial devia ser a do prime time de cada um, o melhor momento de nossa vida. Presente de Natal. Também gostei do que eu próprio me dei, a biografia de Bob Spitz dos Beatles. I’d love to turn you on. Mil páginas. Só beatlemaníacos como eu.
Mas o disco de que falei, o artesanal. A faixa dois. Je T’Aime. Um clássico. Jane Birkin simula um orgasmo. Simulou tão bem que muita gente achou que ela tinha gravado na cama, não no estúdio. Penso em Jane Birkin, uma das mulheres mais lindas de sua era, a típica francesinha que parece ter sido feita para ser possuída, e depois penso naquela cena de Harry e Sally em que Meg Ryan, num bar, finge um orgasmo, para perplexidade de seu acompanhante e de todos ao redor. Uma cena absolutamente brilhante. Me corrigem, Jane Birkin não era francesa, mas inglesa. Há certas ocasiões em que os fatos estão errados, e esta é uma delas: Jane Birkin, mesmo inglesa, é tão francesa quanto Paris.
E me pergunto, numa tarde à toa de final de ano, qual dos gemidos falsos foi mais bem feito, o de Jane ou o de Meg? Quem quer votar?
Ah, sim, lembro também de uma passagem de Friends em que Chandler diz a Monica que simulara um orgasmo, e depois explica como, e basicamente é com a mesma estratégia feminina: alguns arquejos, barulhos, movimentos, e um falso suspiro de encerramento. Lembro que eu … bem, não lembro nada. Monica, inconformada, responde: “Vocês roubaram a única coisa que nos restava?” LOL. Eis outra cena definitivamente primorosa. Alguém fala nas provas que os homens deixam, ao contrário das mulheres, mas alguém procura por elas depois de um desempenho teatral convicente?

Carol, Eduardo, Marco e Pedro

27/12/2007

Era primavera de 2001, um começo de noite quente e sem brisa, e os dois estavam num barzinho de São Paulo.”Amo o Eduardo”, disse Carol. “O amor é feito de admiração e de desejo, e isso quer dizer que amo muito o Eduardo.” Carol olhava Pedro fixamente nos olhos. Ela tinha enormes olhos verdes, e usava óculos que lhe davam um ar de professora de primeiro grau. Carol tinha o hábito, nas conversas, de colocar os óculos sobre a cabeça, e Pedro não gostava. Preferia o cabelo dela solto. Era um cabelo bem tratado, cabelo de mulher da sociedade paulistana, 500 reais a sessão no cabeleireiro, e além disso ele gostava do ar de professora. Talvez porque sua própria mãe tivesse sido professora.

Era primavera, e eles estavam tendo um caso fazia quatro meses. Carol era casada com um banqueiro, Eduardo, e Pedro fora convidado para escrever um perfil dele para uma revista de negócios. Pedro foi um dia ao casarão do banqueiro no Morumbi para completar seu trabalho de apuração de informações. Reparou numa estátua de uma mulher nua em tamanho natural, e ouviu de Eduardo que a comprara por impulso depois de vê-la num restaurante em Paris. Eduardo soube, da dona do restaurante, que a mulher que servira de modelo era a filha dela mesma. Ofereceu a ela um dinheiro considerável, e acabou por trazer a estátua como um troféu de caça para sua casa. Pedro olhou para a mulher do banqueiro e pensou que ela daria uma estátua ainda mais interessante que a da filha da dona do restaurante parisiense. Imaginou-a, por um momento, sem roupa, e gostou do que viu mentalmente. Na saída, deixou com o banqueiro o número de seu celular caso ele quisesse acrescentar alguma coisa mais para o perfil. No dia seguinte, ligaram para seu celular da casa do banqueiro. Mas quem o procurava era Carol, e não Eduardo. Se encontraram num barzinho longe o suficiente da área de risco para Carol, e quando ela pagou a conta já era certo que a história não terminaria ali.

“O Eduardo. Não me imagino vivendo sem ele”, disse Carol. Estavam na cama do pequeno apartamento de Pedro em Pinheiros. Pedro gostava dos resíduos do perfume que ela deixava no lençol. Ela usava Paris. Uma vez Pedro seguiu na rua uma mulher apenas porque sentiu nela, ou imaginou sentir, o cheiro do perfume. Paris. Ela sempre pedia para ele colocar o tema de Blade Runner quando se deitavam. Vangellis. Aquele sax melancólico. “A música esquenta o começo, e depois ninguém ouve nada mesmo”, ela lhe dissera quando Pedro lhe perguntara se aquela melodia durava o bastante para animar uma jornada sexual completa. Carol dizia que a música lhe lembrava um amor que tivera no passado, também ele jornalista. Marco. Marco Aurélio, como o imperador filósofo. Carol guardara tudo que Marco Aurélio lhe escrevera. Marco morrera jovem, aos 32 anos. Carol tinha na bolsa uma fotografia dele, um três por quatro que escondia cuidadosamente de Eduardo, mas não de Pedro. Para Carol, Pedro era fisicamente parecido com o que Marco teria sido se a moto em que viajava para Santos não tivesse sido colhida por aquele caminhão que não foi detido pelo freio na pista escorregadia da Imigrantes num começo de noite garoento. Marco despertara em Carol o gosto pelos bons livros, e ela tentara sem muito sucesso criar nele o gosto pelas roupas finas.
“E sem mim, você consegue se imaginar?”, Pedro perguntou.
“Consigo. Não vou mentir pra você. Pedro. Nosso pacto é a verdade. Você também não mente pra mim. Eu gosto disso. Lembro aquele dia. Perguntei se você tava saindo com alguma outra mulher, e você me falou daquela repórter do Estadão. Perguntei se o sexo era bom, e você confirmou imediatamente.”
Sim, ela tinha razão. Enganavam muita gente, mas não mentiam um para o outro. Era uma espécie de código de ética que haviam firmado mutuamente.
“Pedro. Você esperava que eu deixasse o Eduardo pra ficar com você?”
Ele pensou que não. Pedro só podia oferecer a ela palavras, e palavras menores que as de Marco Aurélio. A vida não é um romance em que o amor triunfa. Pedro silenciou. Era comum, nele, se refugiar subitamente no próprio silêncio. Sentia então um conforto parecido com o que tivera, criança, no colo da mãe professora.
“Você esperava isso, Pedro? Que eu abandonasse o Eduardo? Você não me respondeu.”
“Não. Nunca esperei. Como poderia esperar isso se você tantas vezes me chama de Eduardo e não de Pedro?”
“Não exagera. Duas vezes, ok, três, e nunca na cama.”
Ele nada falou, embora soubesse que sua mudez fosse capaz de exasperá-la mais que palavras duras.
“Pedro. Escuta. Não vou dizer que te amo. Seria uma precipitação e um exagero. Mas. Mas. Se não nos víssemos mais, sentiria sua falta. Muito. Você … você … fala pra minha alma. Como o … como o Marco.” Pareceu a ele que ela estava tocada ao falar no nome do amor antigo, mas podia ser apenas impressão. Talvez Pedro gostasse de vê-la tomada pela emoção, ela que tinha um domínio sobre si mesma tão rígido.
Era a maior declaração que Carol fizera a Pedro. Ele respondeu mais uma vez com o silêncio.
“Você talvez imagine que eu seja uma mulher fria. Calculista. Não dizem que toda capricorniana é uma máquina calculadora e fria como as geleiras de Perito Moreno? Mas escuta. Escuta bem. Eu não sou isso. Eu continuo a menina sonhadora que nasceu e cresceu na avenida São Luiz.”
Pedro continuou estacionado em seu silêncio. Ele jamais a condenara. E ela mesma: será que se julgara e condenara num impiedoso tribunal íntimo?
“Você acha que rico é ruim e pobre é bom, Pedro? Você se acha melhor que o Eduardo apenas porque não cobra juros dos outros?”
“Eu teria me vendido se alguém me comprasse, Carol. Sou igual a todo mundo. Talvez pior porque sou incompetente até pra me vender.”
“Pedro. Eu. Pedro. Eu odeio você. Entendeu? Eu te odeio. O que você é é um cínico esnobe que acha desprezível quem não conhece o Montaigne e o Proust. Você é … você é patético, Pedro. O Marco. O Marco era muito melhor que você, e nunca foi um pretensioso vazio. Os contos que ele dedicou a mim. Neles eu não era uma mulher superficial, como naquele conto seu inspirado em mim. Pedro. Você acha mesmo que eu telefonaria a um jornalista que vi pela primeira vez na minha casa ao lado do meu marido e o convidaria pra beber? Ficção ruim, Pedro. E o Eduardo, Pedro … o Eduardo te dá de dez a zero na cama.”
Ele riu. Dez a zero. Ocorreu a ele que Carol jamais trocara o nome dele pelo do marido quando o insultava. Também pensou que poderia suplantar a realidade de Eduardo, talvez, mas não o fantasma de Marco. Fantasmas são imbatíveis. Aspirou o ar em busca de algo do perfume pelo qual se obcecara como um mergulhador que necessita de oxigênio para ir em frente. Paris. Pedro queria dizer que a admirava e respeitava pela inteligência prática e beleza superior, e que não desprezava Eduardo apenas porque ele não lera Montaigne nem Proust, e que aceitava a goleada que ela lhe impusera, mas achou melhor não abandonar o refúgio de seu silêncio.Ela se levantou, se arrumou rapidamente e partiu. Com a graça majestosa que sobrevivia até a uma explosão de fúria. Os óculos de professora, como ele os amava naquela primavera de 2001.

No dia seguinte, ela iria com o marido passar o final de semana na esplêndida casa de Campos de Jordão, e os dois seriam um casal bonito e feliz, e talvez saíssem em colunas sociais, sorridentes e vitoriosos. Carol. Ela voltaria para Pedro quando estivesse entediada em São Paulo?
Pedro pensou nisso, e não encontrou resposta. Ele acendeu um Hollywood, esticou os braços, apanhou “Adeus, Minha Adorada” e se entreve com o pequeno grande livro de Raymond Chandler. Quis ouvir música, e pegou um disco antigo. Don Maclean, mas não era American Pie que ele desejava escutar. Era uma canção b, desconhecida, ou conhecida apenas pelos especialistas em Mclean. What a Shame. Gostava do trecho final. In this moment I recall you face/And I wonder if you sti
ll think about me/Occasionly I still think of you/And I watch the river flows/And I know I must let go/But it’s oh so hard/For the waves are all around my small canoe/I had always hoped this boat could carry two.
Preguiça de legendar, mas enfim. Na raça. Aqui e agora vejo o seu rosto/E me pergunto se você ainda pensa em mim/De vez em quando ainda penso em você/E contemplo o movimento do rio/E sei que tenho que deixá-lo/ Mas como isso pode ser duro/ Pois as ondas estão todas elas cercando minha pequena canoa/ Eu sempre achei que ela levaria dois.

Uma pressão desesperada nos dedos

26/12/2007


E então leio uma notícia no jornal. Um seriado de tevê em que um dos personagens principais é um jornalista que se matou. Lembro dele. Ou melhor, me lembro do nome, lido em artigos e expedientes de revista. Ele se atirou, se não me engano. Recordo também as palavras bonitas e comovedoras pronunciadas sobre ele quando morreu. Era tido como um estilista. Me vem à cabeça um ensaio de Montaigne, que outro dia reli no fragor de um momento de tristeza. “A morte mais bela é a voluntária”, escreveu Montaigne. E eu que tinha aberto Montaigne em busca de luz e calor. Lol. Montaigne citou os vários sábios que se mataram. Um deles era Zenon, fundador da escola estóica, uma influência tão grande em Montaigne. Resigna-te e suporta, este o inspirador lema dos estóicos. Zenon, segundo relatos, disse uma frase enigmática. “Aqui me tens”. E se enforcou.
Uma das aberturas mais lindas de artigo que vi na minha vida dizia respeito a um suicídio. Era uma capa da New York, e tratava da morte de um mulher da sociedade. Começava mais ou menos assim: ela era linda, jovem, brilhante, bem sucedida, amada, vigorosa. Tinha enfim todos os atributos que deveriam impedir alguém de se atirar da janela de um arranha-céu mas nunca impedem.
Um suicídio perto de nós nos assombra a vida inteira como um pesadelo intermitente. Ele não está com você o tempo todo, mas reaparece em certos momentos. Marco. O Marcão. Tanto tempo atrás. O Marcão. Ele era jovem, bonito, rico, inteligente, amado pelas mulheres e admirado pelos amigos, entre um quais um candidato a escritor. Cabelo ruivo, pele sardenta, olhos claros e tristonhos. O Marcão. Tinha todas as qualidades que deveriam evitar que alguém apontasse o revólver contra a própria boca e fizesse uma pressão desesperada com o dedo no gatilho, mas … mas … sei lá, tudo aquilo no Marcão foi insuficiente para deter seu dedo. O Marcão. Como ele teria envelhecido? Que marcas teriam feito a ele a longa caminhada nessa terra de beleza miserável? Penso agora. A imagem que se congelou no tempo do Marcão é tão bonita que … sei lá o quê.
Um suicídio perto de nós e de nossos afetos é um pesadelo intermitente em nossa vida. Não aparece todo dia, mas jamais some por completo. Tinha que ser acompanhado por uma música este meu texto. Tão triste e tão linda. All The Youg Dudes, David Bowie. Todos os chapas, amigos. Carregam a notícia da morte por suicídio de um amigo. Este mais ou menos o sentido da letra. All The Young Dudes. Sinto falta dos meus young dudes. Sei lá. Me ocorre. Que. Se o cara antes de se jogar no ar ou de apertar o gatilho pensasse nisso, na dor de intermitência eterna que provoca nos que o amam, talvez menos gente se matasse. Mas sei lá. Não gostaria que isso soasse como uma censura póstuma ao Marcão. E então volto a Bob Marley e ao post anterior. Tudo vai dar certo. Não se preocupe com nada.

Tudo vai dar certo

24/12/2007


E então é noite de Natal. Meus filhos e eu, e nós estamos felizes, e cantamos Bob Marley, Three Litlle Birds. Não se preocupe com nada, tudo vai dar certo. Sei lá, é o que gostaria de dizer a todos. . Mesmo que tudo dê errado. Lol. Foi a música que tocou no funeral de Bob Marley, e eu me lembro da cena jamaicana com alguma emoção, e clareza plena, as pessoas dançando e celebrando a vida e a obra e o legado de Bob Marley. Fazia sol, e as pessoas pareciam ter bebido um bocado ou para lembrar ou para esquecer. Meus filhos acabam de ir embora, tempo de ir para a casa da mãe, e eu os vejo sair e sinto o quanto os amo, e por um instante reflito na continuidade da vida por eles. Olho para o retrato de meu pai pendurado na sala, e retribuo o sorriso, e outra vez me ocorre a canção tão feliz de Bob Marley. , não se preocupe. Tenho que seguir adiante, me esperam, e então antes de partir ouço sei lá por que uma outra velha música amada, agora do Pink Floyd, e me detenho num verso específico. We’re two lost souls/swimming in a fishbowl/year after year. Somos duas almas perdidas/ nadando num aquário ano após ano. Gostaria de ter escrito este verso, mas Papai Noel não me concedeu isso. Mas não faz mal. .

Aconteceu em Estoril

21/12/2007


“Meu Deus… Dezessete! Dezessete! Ganhamos.” Carol festejou o 17 com entusiasmo barulhento. Pulou, gritou, agitou os braços. O imperturbável crupiê de cabelos pretos e engomados e postos para trás pareceu enternecer-se com aquela explosão espontânea e irrefreável de alegria, típica de novatos. De olhos vendados o crupiê poderia apontar quem era profissional e quem era amador ali. O profissional ganha 1 milhão de dólares com a frieza de quem ganha um liquidificador numa rifa de escola. E perde esse milhão com a mesma frieza, ainda que depois se dê um tiro no céu da boca, como Hemingway.

Carol e Otávio estavam no Cassino de Estoril. Era primeira vez que ela entrava num cassino. Tudo que conhecia do tema resumia-se ao que lera em O Jogador, de Dostoievski, e ao que vira em alguns filmes. Os filmes lhe tinham dado uma visão tão glamourosamente deturpada que, antes de sair para o cassino, Carol perguntara a Otávio se deveria vestir-se a rigor. Ele apenas sorriu. Ela entendeu na hora. Entendia cada expressão de seu rosto. E amava isso. A intimidade cúmplice conquistada ao correr dos dias.

Carol parecia fascinada com o que via em Estoril. Decidira já escrever um conto sobre o que estava vendo. Ela era redatora publicitária e já publicara dois livros: um romance e uma coletânea de contos. Trabalhos densos, às vezes impenetráveis, inspirados em Clarice Lispector, a quem amava sobre todos os outros escritores. Carol obtivera, para ambos os livros, boa crítica – fora chamada de talento emergente – e, como era previsível, vendas medíocres. Não se esgotara a primeira edição de 2.000 livros de nenhum deles.

Seu sonho era um dia vender como escritor americano (embora desprezasse o estilo Big Mac de quase todos eles, de Stephen King a John Grishan) para então se dedicar apenas à literatura. Escritora profissional. Propaganda era trabalho. Literatura, paixão. Ela tinha 32 anos, cabelos amarelos divididos ao meio e cortados na altura dos ombros. Tinha a pele bem branca e lábios finos que escondiam a voluptuosidade dos beijos. As sobrancelhas negras e hirsutas, tão em contraste com a brancura da pele e o amarelo do cabelo, eram a parte de seu rosto de que Otávio mais gostava.

Ele era um prestigiado editor de livros e tinha quinze anos a mais que ela. Editara os livros de Carol. Otávio tinha quase 1,90 metro, mas aparentava menos porque era curvo. Crescera demais na adolescência e a espinha acusara isso. A mistura de sua maneira espirituosa, divertida e às vezes sarcástica de abordar as assuntos com seus olhos infantilmente termos conservara nele a capacidade de impressionar as mulheres. Ele tinha a virtude do humor. Sabia fazê-las rir. Dois tipos de homem são preciosos aos olhos de uma mulher. O que lhe dá orgasmo e o que lhe dá risada. O ideal feminino é juntar ambos os tipos num só homem. Mas, se ela tiver que escolher um, ficará com o que lhe dá risada. “Sabe do que eu mais gosto em você?”, disse Carol um dia a Otávio. “Fora o sexo inigualável e minha conta bancária bilionária?”, disse ele. “É seu humor. Não preciso explicar as piadas a você.”

Otávio sonhara, na juventude, ser escritor. Mas era incompetente nesse ofício. Tudo que escrevera de poemas a contos, e até um romance inacabado, era lixo em forma de letras. Faltavam-lhe imaginação, ousadia, engenho. Essa era a má notícia. A boa é que ele fora o primeiro a reconhecer. Amava os livros e acabou encontrando na edição uma maneira de ganhar a vida sem se afastar deles. Fez-se numa grande mas decadente editora e, depois de acumular experiência e fazer uma boa agenda de telefones, montou seu próprio negócio. Tinha como editor o talento que lhe faltava como escritor: sabia ler um livro, distinguir entre o que presta e o que não presta. E sabia divulgá-los. Cultivara amizades nas redações. Seus livros eram bem acolhidos entre os resenhistas. Otávio sabia como chamar-lhes a atenção. Mandava, junto com cada livro, as críticas elogiosas que a imprensa americana dera. Isso faz muita diferença nas redações brasileiras. Está cientificamente demonstrado: elogio de crítico americano garante espaço para um livro em qualquer publicação brasileira.

Ele alcançara sucesso como editor e era feliz com isso. Apenas algumas vezes, quando descia ao estágio mais profundo de suas reflexões, pensava que talvez trocasse todo o dinheiro e prestígio que ganhava na edição de livros por uma única página interessante que pudesse escrever. Mas conseguia lidar com isso. Não se tornara amargurado. Não tinha vontade de esganar escritores talentosos. Bastava-lhe editá-los.

Otávio conhecera Carol porque a agência em que ela trabalhava tinha a conta de sua editora. Não era uma conta que desse dinheiro, mas dava prestígio. Era uma editora de grande reputação. No seu campo, tinha como rival em imagem apenas a Companhia das Letras. Todo autor queria ser publicado ou pela Companhia ou pela Literati, a editora de Otávio.

Carol também.

Um dia, ela arriscou. Ela acabara de apresentar a ele, na agência, a campanha de lançamento de um novo romance na Literati. Um romance em cujo sucesso a Literati estava disposta a apostar. O autor era uma celebridade do jornalismo de televisão. Fazia palestras Brasil afora. A Litareti providenciaria que, em cada palestra, os espectadores pudessem comprar o livro. Carol aprendera fazia muito tempo que livro de jornalista encontrava calorosa recepção nas redações. Os jornalistas cuidam dos seus.

Terminada a apresentação, Otávio foi cumprimentar Carol. Ela aproveitou a ocasião e disse-lhe que tinha contos na gaveta. Otávio gostou de ver o ligeiro rubor que tomou seu rosto ao falar nos contos. Pareceu-lhe que Carol tinha uma ingenuidade essencial. Ele lhe pediu que os enviasse. Leu e gostou. Gostou de verdade, ainda que os considerasse pretensiosos e difíceis de ler. E também se enterneceu com a vontade de Carol de ser escritora. Isso tinha conexão com seu próprio passado, no qual o sonho de ser escritor tivera um papel tão relevante. Um conto de amor lésbico excitou-o mais que qualquer coisa, desde aquela que julgava a página mais erótica que já escrevera, a cena de Ligações Perigosas em que um libertino dita para a jovem que corrompera uma carta de amor endereçada a seu cândido noivo enquanto fornicam.

Seria ela lésbica?

Tão feminina, mas são tempos de lesbianismo chique. As lésbicas não se parecem mais lésbicas, como mostra a série The L Word. Otávio discretamente informou-se sobre ela. Soube que não, ela não era lésbica. Soube também que ela terminara recentemente seu casamento com um médico oncologista. Na primeira vez em que eles falaram sobre o assunto, Carol disse a Otávio que seu marido sabia tudo sobre câncer, mas pouco sobre ética. Seu casamento começou a morrer, disse ela, quando soube que seu marido adotava o procedimento de dar descontos a pacientes que topassem receber uma nota fiscal abaixo do preço real. “De repente me dei conta de que estava dormindo com um…com um ladrão”, disse ela. “Exagerada”, Otávio respondeu. Com o tempo ele saberia, para o bem e para o mal, que o exagero era uma das características mais marcantes de Carol.

Também ele tinha acabado havia pouco seu casamento, o segundo, com uma professora de ioga. Otávio convidou Carol para jantar sob o pretexto de falar sobre os contos. Carol logo atendeu. Quem quer discutir a sério convida para almoçar. Jantar é diferente. Nenhum local parece mais adequado ao início de um caso de amor do que uma mesa de jantar. Ela sabia disso e não teria aceitado o convite se não achasse Otávio interessante não só como editor mas também como homem. Foram ao Clepto�s, nos Jardins, uma das mais duradouras preferências da Otávio. Uma parada no bar para ouvir o velho repertório romântico ao piano, depois a comida e, enfim, uma segunda parada no bar antes de ir embora.

Naquela mesma noite, Otávio se tornou editor e amante de Carol. Do Clepto�s foram ao apartamento de Otávio, na Vila Nova Conceição. Quando a viu saindo nua da banheira de azulejos azuis e cortina laranja de seu apartamento, Otávio foi tomado pela imagem de um quadro pelo qual alimentava uma paixão avassaladora desde que o vira no museu Ludwig, em Colônia. Era um quadro de Tom Wesselman chamado Banheira 3, em que uma jovem e esguia mulher, em cujo rosto se vê apena uma boca, seca-se com uma toalha listrada. Otávio era particularmente fascinado pela cabeleira ruiva do sexo da mulher sem traços. A cabeleira combinava de forma perturbadora com a cortina cor de laranja e a toalha amarela e branca. No preciso instante em que Carol saía da banheira como a mulher de Wesselman tocava, no aparelho de CD de Otávio, I�m Getting Sentimental Over You. Era talvez a música favorita de Otávio. Dali por diante, Carol, os acordes melancólicos da velha canção e a mulher de púbis fulva do quadro de Wesselman estiveram sempre associados na cabeça de Otávio.

Pouco tempo depois daquela noite, ele e ela estavam convencidos de que jamais tinham amado alguém tão intensamente. Mas não demorariam muito a perceber quanto isso é insignificante para que duas pessoas permaneçam juntas.

Parte 2

21/12/2007

Existem casos de amor em que o maior triunfo é a sobrevivência dos protagonistas,
FH

Em Estoril, Carol tinha à mão um bloco no qual ia anotando cenas interessantes para aproveitá-las eventualmente no conto que planejava escrever sobre o cassino. Anotava-as sinteticamente. Numa hora em que ela fora ao banheiro, vira uma vendedora ambulante de fichas mostrar a uma faxineira uma revista em quadrinhos do Zé Carioca. A vendedora era brasileira e parecia dominada por uma espécie de patriotismo nostálgico ao folhear as páginas da revista. “Este é meu país”, dizia a vendedora à faxineira. Carol pensou, na hora, que viver em terra estrangeira é uma das experiências mais duras que podem acontecer a alguém.

Carol e Otávio vinham jogando no 17 pleno fazia quase duas horas. Ele lhe pedira que escolhesse um número, um único número, e ela ficara com 17 porque fora a época mais feliz de sua vida. Dezessete anos. Primeira paixão, primeiro sexo, primeiro orgasmo. Primeira leitura de Clarisse Lispector. Tinha aos 17 olhos de Natasha, a Natasha de Guerra e Paz de Tolstoi, olhos de estrela, brilhantes, sonhadores, aqueles olhos que só temos numa fase da vida. Num certo momento, dera o número 17 duas vezes seguidas. Mas na roleta vizinha. “Vamos mudar de roleta”, disse Carol. “Estamos no número certo, mas na roleta errada”. Otávio a convencera a permanecer onde estavam, sob o argumento discutível de que estatisticamente era impossível que voltasse a dar o 17 depois da dupla aparição. Na verdade, ele estava com preguiça de fazer a mudança: achar um novo espaço vago para se acomodar, encontrar uma cor disponível para as fichas, tudo isso sempre dá muito trabalho.

E eis que apareceu o 17.
“Isso exige uma comemoração”, disse ela, enquanto o crupiê empurrava com a pá as fichas pretas ganhas na direção do casal. A comemoração foi um beijo na boca. O beijo foi interrompido por alguns segundos por Carol. “Me dá a língua”, pediu ela. Otávio perdera já a conta das vezes em que Carol lhe pedira que pusesse a língua num beijo. Ele costumava dizer que tinha a língua curta. Na verdade, sentia-se muito velho para aprendera beijar como ela queria. Beijo bom para Carol era beijo doído para ele.

Isso nunca chegou a ser dito claramente por nenhum dos dois, mas Carol e Otávio sabiam que tinham ido a Portugal numa tentativa desesperada e, afinal, vã de salvar seu amor. A maior parte dos casos termina por falta de amor. O deles parecia estar terminando por excesso. Brigavam com freqüência e violência cada vez maiores. A reconciliação, depois de cada guerra, era voluptuosamente maravilhosa. Mas ficava cada vez mais difícil, para cada um deles, enfrentar o desgaste crescente de atritos sempre mais penosos. A reconciliação era como um momento em que, depois de longamente submersos, afinal respiravam. O problema é que o tempo de respiração diminuía cada vez mais, enquanto o de submersão aumentava cruelmente. Nos últimos meses, parecia ter crescido em ambos a sensação de que não era possível um final feliz para sua história. Era como se o instinto de sobrevivência lhes dissesse que, por mais dolorido que fosse, deveriam afastar-se um do outro. Arrasados, mas vivos. Existem casos de amor nos quais a sobrevivência física é o maior triunfo dos protagonistas.

Otávio lera num Le Carré um personagem dizer que as mulheres que o estapearam uma vez jamais tiveram uma segunda chance. Carol tivera uma segunda, e uma terceira, e uma quarta, e mais uma quantidade de vezes que o fizera perder a conta. Eram tapas, insultos, arranhões. Uma vez, numa fugaz trégua, ele lhe dissera que, como o célebre caso do advogado de Prestes, o líder comunista brasileiro, iria invocar a lei de proteção dos animais em sua defesa. Deram risada, fizeram amor triunfalmente e, como sempre, voltaram a guerrear. O horror e a glória. A agressão e a cópula. A progressiva ruína da capacidade de convivência civilizada dos dois encontrara uma contrapartida desesperada no esplendor sexual. Mas já não havia como ignorar que a causa estava perdida e seu dias como casal, contados.

“Eu não sou assim”, disse ela certa vez depois de gritar insultos. “Você é que me deixa assim. Você é o cara mais egoísta do mundo. Tudo tem que girar em torno de você. Você é que sempre escolhe o filme. O restaurante. E não abre mão nunca do bridge com amigos na quinta.”

“Isso é vitimologia barata”, disse ele. “Você é assim porque é assim. Ninguém é vitima de ninguém. Você projeta em mim todas as suas frustrações. Você olha para mim como se estivesse olhando para o espelho. Você diz para mim tudo que não tem coragem de dizer para você mesma. E eu não jogo bridge há duas semanas.”

“Deus do céu”, disse ela. “A que ponto chegamos. Nossas conversas se transformaram em sessões de psicanálise.”

“Ou em diálogos de filme de Woody Allen na fase Bergman.”

Mas ali no cassino de Estoril pareciam felizes, para sempre felizes. Nada parecia capaz de separá-los enquanto as fichas retinissem e o alarido de gente que ganhava e gente que perdia não se dissolvesse num silêncio funéreo. Otávio estava menos interessado no jogo em si do que nas reações de Carol em sua estréia comoventemente desajeitada num cassino. Talvez fosse seu derradeiro legado: tê-la introduzido nas emoções tumultuadas do jogo. Carol torcia entusiasmadamente cada vez que a bola vagava caprichosa entre os números. E se impressionava com os tipos a seu redor. O homem de grandes bigodes que jogava simultaneamente em quatro roletas. O homem corpulento que anotava, num papelzinho, cada número saído. A mulher sozinha que subitamente começara a soluçar e correra em direção da saída. “Onde estão aquelas mulheres maravilhosas, de vestido negro longo e decotado, que a gente vê nos filmes?”, perguntara ela a Otávio, logo depois de entrarem no cassino. “Na nossa fantasia”, respondera ele. “Claro, claro, na nossa fantasia”, concordara ela. E, então, ficou claro para ela que o conto que escreveria seria também à base de fantasia, como nos filmes.

Pareceu a Otávio, por um momento, que ela tinha os olhos úmidos quando dissera “nossa fantasia”. Mas depois, quando reconstruiu a cena em sua memória, achou que também os olhos úmidos eram apenas fantasia. A cena ficaria melhor, ou pelo menos mais dramática, com lágrimas. O formidável enterro de sua última quimera, como escreveu Augusto dos Anjos. Ele jamais prestara como escritor, mas teve a sensação nítida de que seria capaz de escrever aquela cena com uma qualidade, com uma intensidade que jamais alcançara em suas patéticas tentativas como escritor.

Aquela cena.

Aquela cena na qual, enfim, ele compreendeu que a única esperança que lhes restava era que a bola que girava errática entre os números jamais parasse, jamais parasse, jamais parasse.

Você é apenas um menino

19/12/2007

Você é um menino. Treze, catorze anos. Inseguro, tímido. Começa a se interessar pelas mulheres. E não vai demorar para perceber que mulheres e problemas aparecem juntos em sua vida. Você não sabe lidar com o mundo novo no qual está entrando. Sua voz está mudando. Os pêlos estão aparecendo. O futebol já não é seu único interesse. Aparecem os primeiros bailes. Você não sabe direito que roupas escolher. As sugestões de sua mãe lhe parecem horríveis. Mãe nunca acerta na roupa do filho, uma lei tão velha e tão eterna quanto as estrelas no céu e as ondas no mar. Ser criança era muito mais fácil.

E então você olha para os garotos um pouco mais velhos. Eles estão nas classes um ou dois ou três anos mais adiantadas que a sua. Seu olhar mistura admiração e inveja. Eles parecem tão seguros. Tão confiantes. Alguns ameaçam um bigode, uma barba. A voz já está definida. E as meninas da sua classe estão apaixonadas por eles, não por você. Eles são mais altos que você. Eles são melhores que você. Já devem até ter dormido com alguma menina. E você jamais viu uma mulher nua que não fosse sua mãe ou não estivesse numa revista. Eles se libertaram daqueles programas sem graça com a família. Mas seu dia chegará. Os dias hão de passar. Você vai crescer e seus problemas desaparecerão. Você será um homem firme, forte, como os caras mais velhos.

E eis que você é como eles. Os caras maiores que você via de longe. Você imaginava que sua vida seria outra. Mas não foi bem assim. Você cresceu, sua voz engrossou. Você até viaja sozinho, sem os pais, com os amigos. A virgindade ficou para trás, mas você já percebeu que o sexo não é o fenômeno extraterrestre que você pensava ser antes de experimentá-lo. É bom, às vezes muito bom, algumas vezes ótimo. Mas não é coisa do outro mundo. A terra não treme sempre ao fazer sexo, ao contrário do que você sonhava. Você já é um homem. Ou quase um homem. E pensava que a segurança máscula viesse com o tempo, com a mesma naturalidade com que a terra se molha quando vem a chuva. Mas não.

E então você olha para os homens feitos. Formados, empregados. Alguns casados. Eles, sim, são os típicos homens. Basta ver o andar seguro, o olhar firme. Eles não têm dúvidas, não têm medos como você. Os mais ricos têm carros chiques. Pagam com cartão de crédito, e não com o dinheiro pedido a seu pai, como você. Uns vestem gravatas que devem valer duas mesadas suas. Alguns têm um cartão em que estão escritos o nome e o cargo. Nada parece ser capaz de abalá-los. Eles não sentem vontade, nas noites mais escuras, de pedir um refúgio na cama dos pais. Você sente, às vezes. Seja honesto: você fez isso outro dia.

Seu dia chegará. E chegou. Você se formou. Arrumou um emprego promissor. Tem um cartão profissional. O carro podia ser melhor, mas é bom. Tem ar-condicionado e som. O namoro é firme. Deve terminar em casamento. Seu armário tem até um blazer Armani que você comprou num momento de entusiasmo e desvario. Mil reais. Você parece o cara mais seguro do mundo, como todos os seus colegas e amigos. Mas só parece. Lá dentro continua uma criança, como todos os seus colegas e amigos. Todos disfarçam bem. Todos aprenderam que ser homem é ser forte. Você queria gritar socorro, mas não convém demonstrar fraqueza. Você queria se abrigar no colo de seu pai, mas ele já não está lá. E então você ri, porque a vida é mesmo engraçada, repleta de crianças fingindo-se de homens até o último dos dias.

Um personagem interessante

16/12/2007

Contraponto, Aldous Huxley. Já leu? Sabia que não. Uma frase tirada ao acaso pela Pequena Aprendiz: “Uma mulher que faz uso de seus deliciosos seios para nos forçar a admirar seu espírito, eis um personagem interessante”. Estaria ela falando de si própria? “Sabia que você ia achar isso, Fabio. Sabia. Você é tão, tão, tão, bem, você sabe o quê. Por acaso tenho que ter seios deliciosos para ser um personagem interessante? Ah, Fabio. Saia da literatura e entre no mundo real.” Ela desligou o telefone, e eu decidi apenas reler Contraponto.

Foi só o tempo que errou

14/12/2007

“Sabe, liguei o rádio do carro naquela estação e pensei: a próxima música que tocar vai ser pra nós”, ela disse. “Tocou uma música que dizia. Dos nossos planos é que tenho mais saudade. Onde está você agora além de aqui dentro de mim? Agimos certo sem querer, foi só o tempo que errou. Vai ser difícil sem você porque você está comigo o tempo todo.”

Os olhos dela estavam úmidos. Ela falava com sofreguidão, com intensidade, e isso não era comum nela. Quieta, discreta, poucas palavras. A pressa com que falava parecia indicar que ela sabia que já não tinham tanto tempo assim para conversas daquela natureza. Era a última oportunidade talvez para olharem para trás e falarem do que representaram um para o outro, ou uma das últimas. Há tempo para chegar e há tempo para partir, está escrito no Eclesiastes, e para eles tinha chegado a hora de partir. Ele não conhecia aquela música. O repertório musical dos dois era diferente, e num determinado momento deixaram de compartilhar as canções que agradavam a um e outro. E os livros, e os filmes, e os planos. Ele foi procurar depois a música da qual ela falara. Vento no Litoral. Legião. “Sei que faço isso pra esquecer, eu deixo a onda me acertar, e o vento vai levando tudo embora.”

“Recebi um email do advogado”, ele disse. “Ele escreveu que tinha sido um final feliz. Final feliz, eu ri ao ler. Final feliz. Antigamente final feliz era, sei lá, bem, não era isso. Não o que ele quis dizer. Que minha proposta de partilha tinha sido aceita, e que estávamos prontos para ir ao juiz para selar a separação. Quando nos encontramos naquela festa. Não, final feliz não era isso. ”

“Você”, ela disse. “Você preencheu todos os meus céus. Olhos de estrela nunca mais, nunca mais.”

“Olhos de estrela. Você tinha olhos de estrela. No seu quarto de moça você tinha olhos de estrela.”

Quarto de moça. Rubem Braga. Era um dos textos preferidos dele. Quarto de Moça. Rubem Braga narrava o encontro com uma mulher que ganhara o mundo, e com isso dinheiro e poder e celebridade, mas perdera seu quarto de moça humilde no qual sonhara tanto. Rubem dizia que, se pudesse lhe dar um presente, reconstruiria aquele quarto para ela. Quarto de moça. Ele se lembrava do quarto de moça da mulher com a qual tivera, nas palavras do advogado, um final feliz.

“Eu não consegui fazer você ser feliz, e me sinto fracassada por isso, e isso me dói tanto, tanto”, ela disse.

“Eu também não consegui te fazer feliz, mas acho que significou uma vitória no fracasso. Derrotas podem ser esplêndidas. A nossa acho que foi. Não tiramos a essência um do outro. A tristeza nos uniu, não só ela, é verdade. O sexo era bom, e como era, mas a tristeza foi talvez a nossa conexão mais forte. Não perdermos o que tínhamos de mais genuíno é um triunfo no fracasso.”

“Seus olhos. Seus olhos são tão tristes. Me sinto culpada. Sempre me sinto culpada, você sabe. E se eu tivesse feito …”

“Nós fizemos o que tínhamos que fazer. Nós lutamos. Nós guerreamos, nós fomos guerreiros, os dois, não só eu, você também. Mesmo quando caídos nós combatemos de joelhos pelo nosso amor, por nós dois, e apenas aconteceu que fomos derrotados. Li num livrinho que você me deu que o que importa não é o resultado, mas a luta, a intenção, a entrega, e então nós, sei lá, nós tentamos, e então está tudo bem.” O livrinho ao qual ele se referiu era o Gita. Krishna e Arjuna, o grande diálogo de Gita. Apenas faça, diz o mentor Krushna ao discípulo e guerreiro Arjuna. Ganhar ou perder não diz nada.

“Agimos certo sem querer”, ela cantou. “.”

“Você trouxe uma música, eu trago outra. Desenhos no Jornal.”

“Ah, essa música não. É tão triste. Dói, deus, como tudo isso dói.”
Pareceu a ele que ela estava prestes a chorar, e não havia nada que ele pudesse fazer ou dizer que trouxesse conforto a ela. Ou a ele mesmo. Não há analgésico que diminua a grande dor das coisas que passaram.
“A arte é triste. Uma vez escrevi isso. A alegria não produz nada que preste na arte. Gosto daquele verso. O final. Um rosto distante se apagando no meio da multidão.”

“O jeito como você escreve. O jeito como você olha. Seus livros esparramados na estante, e a luz do abajur até tarde da noite. Eu nunca. Eu nunca vou esquecer.”
“Você dançando. Pequena bailarina. Aquela música. A que fala que todo mundo devia vê-la dançando na areia. É assim que lembrarei de você. Tiny dancer dancing in the sand.”
E então eles se despediram, e então eles eram, para sempre, um rosto distante se apagando no meio da multidão.

Foi só o tempo que errou

14/12/2007

“Sabe, liguei o rádio do carro naquela estação e pensei: a próxima música que tocar vai ser pra nós”, ela disse. “Tocou uma música que dizia. Dos nossos planos é que tenho mais saudade. Onde está você agora além de aqui dentro de mim? Agimos certo sem querer, foi só o tempo que errou. Vai ser difícil sem você porque você está comigo o tempo todo.”

Os olhos dela estavam úmidos. Ela falava com sofreguidão, com intensidade, e isso não era comum nela. Quieta, discreta, poucas palavras. A pressa com que falava parecia indicar que ela sabia que já não tinham tanto tempo assim para conversas daquela natureza. Era a última oportunidade talvez para olharem para trás e falarem do que representaram um para o outro, ou uma das últimas. Há tempo para chegar e há tempo para partir, está escrito no Eclesiastes, e para eles tinha chegado a hora de partir. Ele não conhecia aquela música. O repertório musical dos dois era diferente, e num determinado momento deixaram de compartilhar as canções que agradavam a um e outro. E os livros, e os filmes, e os planos. Ele foi procurar depois a música da qual ela falara. Vento no Litoral. Legião. “Sei que faço isso pra esquecer, eu deixo a onda me acertar, e o vento vai levando tudo embora.”

“Recebi um email do advogado”, ele disse. “Ele escreveu que tinha sido um final feliz. Final feliz, eu ri ao ler. Final feliz. Antigamente final feliz era, sei lá, bem, não era isso. Não o que ele quis dizer. Que minha proposta de partilha tinha sido aceita, e que estávamos prontos para ir ao juiz para selar a separação. Quando nos encontramos naquela festa. Não, final feliz não era isso. “

“Você”, ela disse. “Você preencheu todos os meus céus. Olhos de estrela nunca mais, nunca mais.”

“Olhos de estrela. Você tinha olhos de estrela. No seu quarto de moça você tinha olhos de estrela.”

Quarto de moça. Rubem Braga. Era um dos textos preferidos dele. Quarto de Moça. Rubem Braga narrava o encontro com uma mulher que ganhara o mundo, e com isso dinheiro e poder e celebridade, mas perdera seu quarto de moça humilde no qual sonhara tanto. Rubem dizia que, se pudesse lhe dar um presente, reconstruiria aquele quarto para ela. Quarto de moça. Ele se lembrava do quarto de moça da mulher com a qual tivera, nas palavras do advogado, um final feliz.

“Eu não consegui fazer você ser feliz, e me sinto fracassada por isso, e isso me dói tanto, tanto”, ela disse.

“Eu também não consegui te fazer feliz, mas acho que significou uma vitória no fracasso. Derrotas podem ser esplêndidas. A nossa acho que foi. Não tiramos a essência um do outro. A tristeza nos uniu, não só ela, é verdade. O sexo era bom, e como era, mas a tristeza foi talvez a nossa conexão mais forte. Não perdermos o que tínhamos de mais genuíno é um triunfo no fracasso.”

“Seus olhos. Seus olhos são tão tristes. Me sinto culpada. Sempre me sinto culpada, você sabe. E se eu tivesse feito …”

“Nós fizemos o que tínhamos que fazer. Nós lutamos. Nós guerreamos, nós fomos guerreiros, os dois, não só eu, você também. Mesmo quando caídos nós combatemos de joelhos pelo nosso amor, por nós dois, e apenas aconteceu que fomos derrotados. Li num livrinho que você me deu que o que importa não é o resultado, mas a luta, a intenção, a entrega, e então nós, sei lá, nós tentamos, e então está tudo bem.” O livrinho ao qual ele se referiu era o Gita. Krishna e Arjuna, o grande diálogo de Gita. Apenas faça, diz o mentor Krushna ao discípulo e guerreiro Arjuna. Ganhar ou perder não diz nada.

“Agimos certo sem querer”, ela cantou. “.”

“Você trouxe uma música, eu trago outra. Desenhos no Jornal.”

“Ah, essa música não. É tão triste. Dói, deus, como tudo isso dói.”
Pareceu a ele que ela estava prestes a chorar, e não havia nada que ele pudesse fazer ou dizer que trouxesse conforto a ela. Ou a ele mesmo. Não há analgésico que diminua a grande dor das coisas que passaram.
“A arte é triste. Uma vez escrevi isso. A alegria não produz nada que preste na arte. Gosto daquele verso. O final. Um rosto distante se apagando no meio da multidão.”

“O jeito como você escreve. O jeito como você olha. Seus livros esparramados na estante, e a luz do abajur até tarde da noite. Eu nunca. Eu nunca vou esquecer.”
“Você dançando. Pequena bailarina. Aquela música. A que fala que todo mundo devia vê-la dançando na areia. É assim que lembrarei de você. Tiny dancer dancing in the sand.”
E então eles se despediram, e então eles eram, para sempre, um rosto distante se apagando no meio da multidão.

Morrer de Amor

13/12/2007

Tenho uma confissão a fazer. Na minha lista das coisas boas da vida os heróis relutantes do escritor inglês Graham Greene têm presença garantida. Mas meu objetivo, neste artigo, não é falar de literatura. É, sim, escrever sobre morrer de amor. Mais adiante vocês entenderão por que comecei com Greene.

E então sou obrigado a mais um de meus intermináveis parênteses. Li há tempos, numa revista inglesa, que tinha sido lançada mais uma biografia do grande poeta russo Pushkin. Pushkin, que praticamente inventou a literatura russa, morreu de amor. De amor por Natasha, sua mulher. Natasha era conhecida como a mais bela mulher de São Petersburgo. Na minha imaginação desinformada, vejo-a como uma morena de pele clara como o teclado de um piano e olhos com o brilho hipnotizador de um par de diamantes. Um imprestável e charmoso exilado francês, que vivia do dinheiro fácil de um homossexual rico, se aproximou perigosamente de Natasha. Pushkin desafiou-o para um duelo. O que torna tudo mais absurdo é que ele já ridicularizara, em sua obra, o ato de duelar. O amante de Natasha era um atirador exímio. Pushkin, ainda hoje adorado pelos russos, agonizou alguns dias antes de morrer de amor, alcançado pela bala mortífera do francês canalha. Era 1837 e ele tinha 37 anos.

O coração partido matou o grande Pushkin. A história desse gênio russo me comove, tantos anos depois e a tantos quilômetros de distância. Não existe morte mais gloriosa do que a morte por amor. E também não existe forma mais sublime e definitiva de amor do que aquele que, como o de Pushkin por Natasha, faz morrer. E acrescento o seguinte: morrer de amor não é escolha. É destino.

E então explico por que comecei minha coluna com Graham Greene. Num de seus romances, Os Comediantes, o narrador encontra num quarto de hotel o corpo pendurado do amante de sua mãe. Ele se enforcara depois de saber que sua amada morrera. Diante da visão do apaixonado suicida, o narrador reflete sobre o amor e os amantes. Li esse livro há muitos anos, mas jamais esqueci aquela reflexão. Quem me deu o romance, na minha juventude, foi meu tio Fabio, um homem sábio do interior. Hoje entendo que fazia parte não de minha educação literária, mas sentimental.

O narrador, na cena da qual eu falava, se compara ao morto no quarto de hotel. Ele próprio tinha, naqueles dias, uma história de sofrimento e decepção com a linda mulher de um embaixador. Não recordo as palavras exatas, mas tenho vívido na memória o tom amargurado da reflexão do narrador. Ele como que invejava o suicida. Sobre si próprio, dizia que o fim de um caso o arrasava por uns dias, umas semanas, uns meses talvez. Mas afinal o que parecia ser uma treva inexpugnável recebia a luz invasora, primeiro tímida, depois arrebatadora, de uma nova história de amor.

Repito. Essa reflexão tinha a sombra da inveja. É como se o narrador reconhecesse que jamais alcançaria as culminâncias do amor e, por isso, se consumisse de inveja vã pelo homem que se enforcara ali naquela quarto de hotel. Como todos nós, o narrador estava vivo, mas condenado ao amor banal, descartável como uma latinha de Coca-Cola. Vá lá, quase tão descartável.

Eu entendi o desabafo do personagem de Greene. Entendi e, de certa forma, compartilhei. Olho para trás e vejo, quase sorrindo, quantas vezes eu, desesperado, imaginei que fosse morrer de amor. Como Pushkin, por quem os russos choram até hoje. Como o amante da mãe do narrador de Os Comediantes. Mas não. Sou um sobrevivente. E me ocorre que o preço que todos nós pagamos pela sobrevivência é acumular, ao longo do trajeto, latas vazias de Coca-Cola.

Me conta uma piada

11/12/2007

Acho que todo cara devia fazer um teste com a mulher antes de iniciar qualquer coisa mais séria com ela. O teste do bom humor. Devia pedir a ela para contar uma piada. Se ela for bem na prova, é o caso de seguir em frente. Se não, e lembrando uma das frases mais marcantes de Sêneca, convém parar: é mais fácil não iniciar do que terminar.

Não peço a patente de originalidade no teste de humor. Na verdade, li há algum tempo numa revista estrangeira que uma empresa considerada inovadora na gestão o praticava como rotina na hora de recrutar. Se o cara fazia rir o entrevistador, boas chances. Caso contrário, as alternativas eram se esforçar para ser mais bem humorado e tentar de novo mais adiante ou então bater em outra porta. A lógica inatacável é que é mais fácil conviver com gente que sabe rir e fazer rir. Num ambiente de trabalho em que as pessoas riem, o rendimento tende a ser melhor. O trabalho com prazer e humor é mais produtivo.

Tudo isso estava escrito na revista que mencionei. E tudo isso, com as devidas adaptações, se aplica a uma relação amorosa. Um caso de amor sem risadas constantes está tecnicamente morto. Não há orgasmos múltiplos que salvem um casal que deixou de rir. O bom humor precede o sexo como termômetro de um relacionamento. Quando e se o sexo arrefece, pode acreditar: as risadas arrefeceram antes. Rir é uma demonstração sublime, superior de sabedoria amorosa. No amor, o humor tem uma virtude lateral mas relevante: o riso torna a pessoa mais bonita e mais atraente. A carranca enfeia. Uma mulher sistematicamente feroz como um cossaco russo é uma mulher para ser atirada na lata de lixo. Mesmo que seja linda e excepcionalmente dotada na arte do sexo. A beleza passa e o êxtase proporcionado por um grande momento sexual se mede em minutos, segundos até. Mas o mau humor de quem não sabe rir é duradouro.

E então me atiro a mais uma de minhas digressões. A humanidade está destinada a, basicamente, escolher entre Heráclito e Demócrito. Primeiro Sêneca e depois Montaigne usaram Heráclito e Demócrito na defesa do humor. (Todos esses nomes estranhos são de filósofos.) Diante da condição humana, diante de tantos obstáculos que são postos diuturnamente perante nós, Heráclito chorava. Demócrito ria. Sêneca e Montaigne diziam que basicamente eram aquelas as opções que a humanidade tinha: rir como Demócrito ou chorar como Heráclito. E ficavam com o riso de Demócrito.

Naqueles repetidos momentos em que me sinto empurrado para a melancolia ou para o mau humor, tento me lembrar da escolha talvez única colocada à frente de nós. Rir ou chorar. Quando sou dobrado, vencido pelo mau humor, sei que não sou sábio. Rir é melhor. Rir é mais saudável, ainda que mais difícil tantas vezes. Por isso imito a empresa que fazia o teste do humor e recomendo a todo homem que peça à mulher que conte uma piada antes de começar o namoro.

Um pedido eterno de desculpa

07/12/2007

Recebi de minha amiga Anne, médica, o texto abaixo. Transcrevo-o tal como recebi. Exceto pelo título, uma expressão que utilizei há algum tempo, e que Anne decidiu usar também agora, num “plágio de um amigo” que ela não nomeia. Posteriormente ela me informou que esse amigo era eu mesmo, e confesso que gostei da frase de que me esqueci.

Nesse mês ele vai fazer 15 anos. Já está um homem, como as mães gostam de dizer. Ele se parece comigo fisicamente: a pele mais morena, cabelos e olhos castanhos. Outro dia veio todo contente porque tinha alcançado 1,80 m de altura. Muito, se comparado ao que imaginamos que nossos genes doariam. É tranqüilo, seguro e bem-humorado, como o pai. Tanto que aprendeu a lidar com as minhas crises – cada vez mais freqüentes – de mau humor. Brinca e diz que eu precisava de um namorado. Separei-me quando ele tinha 3 anos. Mas conseguimos com que ele sempre tivesse a companhia de ambos. Decidiu ser médico, como nós, mesmo sem nenhuma influência. Queríamos apenas que seguisse a sua vocação. Como gosta de ler e escrever, eu pensei que quisesse ser jornalista. Mas é apenas uma paixão distante pelas letras, como eu tenho. Ou culpa minha, por tê-lo enchido de livros quando era criança. Adora uma bola, o tal futebol. E sonhou ser jogador também, mania de moleque. Foi uma coisa que o uniu ao pai. Jogavam todos os finais de semana, junto com seus amiguinhos e pais. Agora está trocando a turma e alguns desses jogos por saídas com garotas. Talvez a minha maneira mais reservada o tenha inibido de comentar sobre elas. Conta apenas para o pai. No fundo, acho melhor: é uma fase em que libera os seus instintos e a minha opinião feminina só iria atrapalhar. Pelo menos é o que penso.

Lembro-me de todas as dificuldades que tive ao engravidar dele. Precisei trabalhar muito, inclusive com plantões noturnos. O meu namorado ainda estava fazendo especialização. Resolvemos nos casar, no meio daquela situação totalmente nova. Posso apenas dizer que fiz o que pude para que o meu filho tivesse conforto, e nem sei se foi muito… Olho para ele com a sensação de que poderia ter sido mais feliz se eu tivesse planejado tudo melhor, mas aconteceu. Quem sabe eu poderia ter optado por interromper a gravidez naquele momento. Poderia ter me casado, estabilizado a minha vida profissional e, então, ficado grávida. Não o teria privado de alguns brinquedos e de alguns passeios. Não teria que inventar tantas desculpas para a falta de recursos com que foi criado. Quem sabe ele até teria um irmão para lhe fazer companhia. Mas tudo foi superado. E quero que ele continue feliz como parece. Só isso importa.

Sou uma médica de 42 anos, casada e sem filhos. Em 1990 fiquei grávida de meu namorado, que também era médico, e decidi fazer um aborto. Na época ele concordou com a minha decisão e lhe deu apoio emocional e financeiro. Casamo-nos quatro anos depois. Não temos filhos por opção.

Escrevi esse texto, plagiando um amigo meu, como “um eterno pedido de desculpa” a meu filho. O que escrevi é exatamente como imagino que seria o meu filho (sim acho que seria um menino…) e como teria sido minha vida se não tivesse interrompido a gravidez. Não quero entrar na questão do certo e do errado ou de quando começa a vida. Assim como outras muitas mulheres que fizeram aborto, não vi uma solução melhor naquele momento. Para mim, não existe arrependimento. Acho que na vida às vezes existem dois caminhos, mas o melhor é sempre o que escolhemos. Mesmo que o outro nos deixe com saudades do que não vivemos.

A grande dor das coisas que passaram

06/12/2007

Rubem Braga, sobretudo nos anos 50 e 60, construiu uma pirâmide literária com suas líricas e despretensiosas crônicas. Pouca gente escreveu em português de forma tão pungente e tão delicada sobre o amor e as mulheres, e sobre o Rio de Janeiro nos seus dias de fausto, quanto Rubem Braga. Rubem Braga está entre os maiores estilistas da língua, ao lado de escritores como Machado de Assis, Eça de Queiroz e Nelson Rodrigues. Uma coletânea da Record com uma seleção de 200 textos de Rubem feita por outro grande nome da crônica, Paulo Mendes Campos, enobrece qualquer estante.

Rubem Braga, como Proust e como Montaigne, pode ser lido ao acaso da página aberta. Você pode pegar qualquer livro dele, ler o quanto quiser em linhas ou páginas, e depois simplesmente fecha-lo. Rubem tinha uma escrita propositadamente simples, mas era um homem refinado intelectualmente. Dizia que o maior verso em português era um de Camões, “a grande dor das coisas que passaram”. De certa forma, o verso de Camões descreve a essência da prosa de Rubem: um olhar poético fixo no passado. Fitzgerald, em Gatsby, escreveu um dos mais notáveis finais de romance. “Estamos sempre condenados a remar rumo ao passado, contra a corrente.” Rubem Braga remou para o passado o tempo todo em sua obra.

O tempo não haverá de fazer efeito sobre os amores e os sonhos perdidos de Rubem Braga, eternizados em páginas de beleza e tristeza avassaladora. Ao falar num desses amores, ele escreveu assim: “Perdida, para sempre perdida, mas tão viva, tão linda, batendo os saltos na cidade da minha memória e da minha saudade”. Sempre quis escrever uma frase como esta de Rubem, o cara que me inspirou a seguir a carreira de escritor barato, mas tenho consciência de que jamais consegui e nem conseguirei. Minha fantasia maior em relação a Rubem, no entanto, seria não iguala-lo, e sim encontra-lo e simplesmente dizer: obrigado por tantos bons momentos que você me proporcionou.

O Caminho

05/12/2007

Não há, na vida de um homem, mais que dois ou três caminhos mágicos. São aqueles que levam a lugares e pessoas especiais, e que se colam como um doce e caloroso adesivo à nossa memória até o fim dos dias. Conhecemos cada pedaço daquele caminho como se fosse um pedaço de nós mesmos e de alguém ou alguma coisa que amamos. Uma árvore da qual jorra uma sombra generosa em dias tórridos. A fachada de uma casa que nos impressiona pela melancolia conquistada ou pelo esplendor perdido. A subida que nos faz arfar. O cruzamento diante do qual é prudente parar olhar para os dois lados cuidadosamente. A pintura rude na rua, em geral com um tijolo, na qual as crianças fixam um campinho de futebol que para elas tem a dimensão de um estádio profissional. O velho melancólico que costuma flanar por ali como que em busca de algo que ficou para trás. O vira-lata branco que gosta de rosnar e assustar os passantes.

Cada trecho está gravado em nós, e é curioso como às vezes podemos lembrá-los em detalhes tanto tempo depois de termos mudado de rota. Uma época que morreu renasce pelos passos imaginários de um caminho que um dia foi de verdade.

A lembranças algumas vezes nos enternecem. Outras vezes nos arrasam. E há também ocasiões em que elas nos despertam um sorriso interior há muito esquecido. De certa forma, elas cumprem o papel de nos lembrar que não desperdiçamos por inteiro a vida. Elas podem também nos fazer recuperar algo que nem sabemos que um dia tivemos.

Um escritor barato a quem o correr dos longos dias fez cínico e descrente, por exemplo. Ele pode lembrar que um dia acreditou nas coisas ao trazer à memória o caminho por onde seu pai, num fusca vermelho, o levava ao clube pelo qual, menino, jogava futebol. Enquanto o carro se movia, ele ao lado do pai sonhava sonhos que se desfariam. Mas que importância a realização ou não de um sonho tem para um menino capaz de arregalar os olhos e ver coisas tão lindas pela frente? O escritor barato talvez tenha esquecido que um dia acreditou, e a simples recordação de quem nem sempre foi descrente pode aquecê-lo por dentro e lhe devolver alento e uma dose de fé ingênua que quem sabe o ajude a atravessar os invernos da nossa desesperança. Invernos da nossa desesperança. É uma frase de Steinbeck, John Steinbeck, romancista americano.

Acho que já escrevi, mas não faz mal: um mestre zen diz que cada um de nós devia ter por perto uma foto nossa de meninos. E olhar para ela para aprendermos com o garoto que fomos coisas que possam melhorar, suavizar, humanizar o adulto que somos. E então me ocorre o pensamento tolo de que gostaria de transformar numa fotografia o caminho levava à casa da menina de olhos verdes e pendurá-la, enorme, gloriosa, no céu. A foto comportaria todos os passos que iam dar naquela casa de portão verde de madeira descascada, aquele mesmo portão que um dia o menino apaixonado transpôs para ganhar a rua e não mais voltar, aquele mesmo portão que, aberto, representou a entrada na terra encantada do primeiro amor e ao se fechar assinalou a chegada do homem de olhos tristes que se transformaria num escritor de folhas na relva, letras para serem pisadas, eventualmente observadas e jogadas fora.

Velhas Fotos

05/12/2007

Às vezes revejo velhas fotografias em busca não sei de quê. (Mais abaixo, tento explicar.) Me detenho especialmente nas fotos de velhos amores. E, antes de seguir adiante, digo o seguinte: tire fotos, muitas fotos com sua namorada (ou seu namorado). Tenho uma razão muito forte para dizer isso. Não sei por que, jamais tirei uma foto com Cláudia. E lamento. Cláudia, bem, Cláudia provocou um terremoto em mim. Tão fina, eu tão, tão, sei lá, tão desleixado. Eu subia o elevador rumo ao sétimo andar, para o quarto de moça de Cláudia, com sofreguidão. Sétimo andar. Sempre que vou procurar as velhas fotos, a ausência da imagem jovem e alegre e bonita e fina de Cláudia me incomoda. Me divertia ao fazer Claúdia dizer coisas tão impróprias para uma mulher com sua classe. Queria testar seus limites, e pude verificar que eram mais elásticos do que eu imaginava.

O registro fotográfico de uma paixão é essencial. Até porque esse registro é uma das poucas coisas que ficam. (Não, não me chame de melancólico, derrotista. Sou apenas sincero.) A paixão se eterniza naquele momento e naquela foto. Não importa o que venha depois. A foto da paixão é como que um formidável desafio ao tempo e aos estragos do tempo. Tudo passa, mas a foto resiste. (Manuel Bandeira certa vez usou a seguinte expressão a respeito de não lembro bem o quê: o tempo não terá efeito. O tempo não terá efeito. Acho essa expressão assombrosamente linda.)

As ocasiões em que mexo nas velhas fotos são raras e são especiais. Quando as revejo, é como se eu estivesse sentindo frio e precisasse de algum calor. E precisasse também da sensação de que minha vida teve, e tem, sentido. De que nem tudo foi desperdiçado, foi perdido. Aquelas fotos me contam que durante algum tempo fiz felizes algumas mulheres e que elas também me fizeram feliz. A certeza da troca (ainda que temporária) de felicidade me aquece.

E então olho para meus amores pretéritos. Vejo Lenira no esplendor dos seus 16 anos. Está calor e ela veste um vestido leve azul sobre sua pele morena. Se não me engano, é o vestido que ela usava quando lhe dei o primeiro beijo. Mas posso estar enganado. Ali nas costas da foto estão palavras escritas em sua letra não muito bonita e em seu português pouco exuberante. Eu tinha 19 anos e estava prestes a passar uma temporada na Europa. “Toda a sorte nessa viagem e nessa vida, Fabio.”

Os olhos verdes de Lenira parecem desmentir o sorriso que ela endereçou a mim na foto. Vejo hoje que seus olhos diziam que nossa festa acabara. Que seguiríamos vida afora cada um de seu lado. E foi realmente o que aconteceu. E talvez não tenha sido ruim para nenhum dos dois. Sempre me senti muito inferior a Lenira. Tive que me afastar dela para perceber que eu não era tão pequeno quanto me sentia a seu lado. Romance nenhum pode funcionar quando você se sente menor que a outra parte. E eu me sentia incrivelmente menor que Lenira. Ela não teve a menor culpa nisso. Ela sempre me prestigiou. Elogiava até meu cabelo punk da época, simplesmente horroroso.

Lenira não pareceu entender quando eu, num comportamento psicótico e destrutivo, a empurrei para longe de mim. Para falar a verdade, nem eu. Antes de embarcar para a Europa, dei uma festa de bota fora em casa. Levei Lenira e a melhor amiga dela, linda aliás, para suas casas. Deixei primeiro, de propósito, Lenira. Queria que ela se atormentasse com a idéia de que eu poderia sair depois com sua melhor amiga. Passaram-se muitos anos para que eu compreendesse que a jogara para longe porque me sentia tão diminuído diante dela. O problema não era ela. O problema era eu. Por Lenira chorei pela primeira vez as lágrimas cruéis do amor. Era um choro tão sentido, tão sincero que levei minha mãe a chorar comigo. LOL. Sofri muito, depois, por outras mulheres. Cheguei a me desesperar em algumas ocasiões. Numa delas, quase enlouqueci. Fiquei tão fora de mim que tomava calmante para me acalmar e, em seguida, antidepressivo para me animar. E alguns goles de steinhegger, admito.

Mas nunca mais chorei.

E então vejo velhas fotos da Nadja. São de nosso último período. Já não havia nem o sorriso, como em Lenira, para desmentir o que os olhos diziam. Perdêramos o jogo. Procuro uma dedicatória e não encontro. É pena que com o tempo deixemos de fazer coisas tão ingênuas mas tão marcantes como as dedicatórias nas costas de uma foto apaixonada.

E então tento encontrar fotos de Nadja de nossa primeira fase. Não encontro. Lembro aí que as rasguei num momento de fúria e lamento a impossibilidade de capturar numa velha foto que rasguei a magia eletrizante de um momento único e que jamais se repetirá. E então digo a você: por maior que seja a vontade, não rasgue aquelas fotos, não rasgue aquelas fotos, não rasgue aquelas fotos.