“Meu Deus… Dezessete! Dezessete! Ganhamos.” Carol festejou o 17 com entusiasmo barulhento. Pulou, gritou, agitou os braços. O imperturbável crupiê de cabelos pretos e engomados e postos para trás pareceu enternecer-se com aquela explosão espontânea e irrefreável de alegria, típica de novatos. De olhos vendados o crupiê poderia apontar quem era profissional e quem era amador ali. O profissional ganha 1 milhão de dólares com a frieza de quem ganha um liquidificador numa rifa de escola. E perde esse milhão com a mesma frieza, ainda que depois se dê um tiro no céu da boca, como Hemingway.
Carol e Otávio estavam no Cassino de Estoril. Era primeira vez que ela entrava num cassino. Tudo que conhecia do tema resumia-se ao que lera em O Jogador, de Dostoievski, e ao que vira em alguns filmes. Os filmes lhe tinham dado uma visão tão glamourosamente deturpada que, antes de sair para o cassino, Carol perguntara a Otávio se deveria vestir-se a rigor. Ele apenas sorriu. Ela entendeu na hora. Entendia cada expressão de seu rosto. E amava isso. A intimidade cúmplice conquistada ao correr dos dias.
Carol parecia fascinada com o que via em Estoril. Decidira já escrever um conto sobre o que estava vendo. Ela era redatora publicitária e já publicara dois livros: um romance e uma coletânea de contos. Trabalhos densos, às vezes impenetráveis, inspirados em Clarice Lispector, a quem amava sobre todos os outros escritores. Carol obtivera, para ambos os livros, boa crítica – fora chamada de talento emergente – e, como era previsível, vendas medíocres. Não se esgotara a primeira edição de 2.000 livros de nenhum deles.
Seu sonho era um dia vender como escritor americano (embora desprezasse o estilo Big Mac de quase todos eles, de Stephen King a John Grishan) para então se dedicar apenas à literatura. Escritora profissional. Propaganda era trabalho. Literatura, paixão. Ela tinha 32 anos, cabelos amarelos divididos ao meio e cortados na altura dos ombros. Tinha a pele bem branca e lábios finos que escondiam a voluptuosidade dos beijos. As sobrancelhas negras e hirsutas, tão em contraste com a brancura da pele e o amarelo do cabelo, eram a parte de seu rosto de que Otávio mais gostava.
Ele era um prestigiado editor de livros e tinha quinze anos a mais que ela. Editara os livros de Carol. Otávio tinha quase 1,90 metro, mas aparentava menos porque era curvo. Crescera demais na adolescência e a espinha acusara isso. A mistura de sua maneira espirituosa, divertida e às vezes sarcástica de abordar as assuntos com seus olhos infantilmente termos conservara nele a capacidade de impressionar as mulheres. Ele tinha a virtude do humor. Sabia fazê-las rir. Dois tipos de homem são preciosos aos olhos de uma mulher. O que lhe dá orgasmo e o que lhe dá risada. O ideal feminino é juntar ambos os tipos num só homem. Mas, se ela tiver que escolher um, ficará com o que lhe dá risada. “Sabe do que eu mais gosto em você?”, disse Carol um dia a Otávio. “Fora o sexo inigualável e minha conta bancária bilionária?”, disse ele. “É seu humor. Não preciso explicar as piadas a você.”
Otávio sonhara, na juventude, ser escritor. Mas era incompetente nesse ofício. Tudo que escrevera de poemas a contos, e até um romance inacabado, era lixo em forma de letras. Faltavam-lhe imaginação, ousadia, engenho. Essa era a má notícia. A boa é que ele fora o primeiro a reconhecer. Amava os livros e acabou encontrando na edição uma maneira de ganhar a vida sem se afastar deles. Fez-se numa grande mas decadente editora e, depois de acumular experiência e fazer uma boa agenda de telefones, montou seu próprio negócio. Tinha como editor o talento que lhe faltava como escritor: sabia ler um livro, distinguir entre o que presta e o que não presta. E sabia divulgá-los. Cultivara amizades nas redações. Seus livros eram bem acolhidos entre os resenhistas. Otávio sabia como chamar-lhes a atenção. Mandava, junto com cada livro, as críticas elogiosas que a imprensa americana dera. Isso faz muita diferença nas redações brasileiras. Está cientificamente demonstrado: elogio de crítico americano garante espaço para um livro em qualquer publicação brasileira.
Ele alcançara sucesso como editor e era feliz com isso. Apenas algumas vezes, quando descia ao estágio mais profundo de suas reflexões, pensava que talvez trocasse todo o dinheiro e prestígio que ganhava na edição de livros por uma única página interessante que pudesse escrever. Mas conseguia lidar com isso. Não se tornara amargurado. Não tinha vontade de esganar escritores talentosos. Bastava-lhe editá-los.
Otávio conhecera Carol porque a agência em que ela trabalhava tinha a conta de sua editora. Não era uma conta que desse dinheiro, mas dava prestígio. Era uma editora de grande reputação. No seu campo, tinha como rival em imagem apenas a Companhia das Letras. Todo autor queria ser publicado ou pela Companhia ou pela Literati, a editora de Otávio.
Carol também.
Um dia, ela arriscou. Ela acabara de apresentar a ele, na agência, a campanha de lançamento de um novo romance na Literati. Um romance em cujo sucesso a Literati estava disposta a apostar. O autor era uma celebridade do jornalismo de televisão. Fazia palestras Brasil afora. A Litareti providenciaria que, em cada palestra, os espectadores pudessem comprar o livro. Carol aprendera fazia muito tempo que livro de jornalista encontrava calorosa recepção nas redações. Os jornalistas cuidam dos seus.
Terminada a apresentação, Otávio foi cumprimentar Carol. Ela aproveitou a ocasião e disse-lhe que tinha contos na gaveta. Otávio gostou de ver o ligeiro rubor que tomou seu rosto ao falar nos contos. Pareceu-lhe que Carol tinha uma ingenuidade essencial. Ele lhe pediu que os enviasse. Leu e gostou. Gostou de verdade, ainda que os considerasse pretensiosos e difíceis de ler. E também se enterneceu com a vontade de Carol de ser escritora. Isso tinha conexão com seu próprio passado, no qual o sonho de ser escritor tivera um papel tão relevante. Um conto de amor lésbico excitou-o mais que qualquer coisa, desde aquela que julgava a página mais erótica que já escrevera, a cena de Ligações Perigosas em que um libertino dita para a jovem que corrompera uma carta de amor endereçada a seu cândido noivo enquanto fornicam.
Seria ela lésbica?
Tão feminina, mas são tempos de lesbianismo chique. As lésbicas não se parecem mais lésbicas, como mostra a série The L Word. Otávio discretamente informou-se sobre ela. Soube que não, ela não era lésbica. Soube também que ela terminara recentemente seu casamento com um médico oncologista. Na primeira vez em que eles falaram sobre o assunto, Carol disse a Otávio que seu marido sabia tudo sobre câncer, mas pouco sobre ética. Seu casamento começou a morrer, disse ela, quando soube que seu marido adotava o procedimento de dar descontos a pacientes que topassem receber uma nota fiscal abaixo do preço real. “De repente me dei conta de que estava dormindo com um…com um ladrão”, disse ela. “Exagerada”, Otávio respondeu. Com o tempo ele saberia, para o bem e para o mal, que o exagero era uma das características mais marcantes de Carol.
Também ele tinha acabado havia pouco seu casamento, o segundo, com uma professora de ioga. Otávio convidou Carol para jantar sob o pretexto de falar sobre os contos. Carol logo atendeu. Quem quer discutir a sério convida para almoçar. Jantar é diferente. Nenhum local parece mais adequado ao início de um caso de amor do que uma mesa de jantar. Ela sabia disso e não teria aceitado o convite se não achasse Otávio interessante não só como editor mas também como homem. Foram ao Clepto�s, nos Jardins, uma das mais duradouras preferências da Otávio. Uma parada no bar para ouvir o velho repertório romântico ao piano, depois a comida e, enfim, uma segunda parada no bar antes de ir embora.
Naquela mesma noite, Otávio se tornou editor e amante de Carol. Do Clepto�s foram ao apartamento de Otávio, na Vila Nova Conceição. Quando a viu saindo nua da banheira de azulejos azuis e cortina laranja de seu apartamento, Otávio foi tomado pela imagem de um quadro pelo qual alimentava uma paixão avassaladora desde que o vira no museu Ludwig, em Colônia. Era um quadro de Tom Wesselman chamado Banheira 3, em que uma jovem e esguia mulher, em cujo rosto se vê apena uma boca, seca-se com uma toalha listrada. Otávio era particularmente fascinado pela cabeleira ruiva do sexo da mulher sem traços. A cabeleira combinava de forma perturbadora com a cortina cor de laranja e a toalha amarela e branca. No preciso instante em que Carol saía da banheira como a mulher de Wesselman tocava, no aparelho de CD de Otávio, I�m Getting Sentimental Over You. Era talvez a música favorita de Otávio. Dali por diante, Carol, os acordes melancólicos da velha canção e a mulher de púbis fulva do quadro de Wesselman estiveram sempre associados na cabeça de Otávio.
Pouco tempo depois daquela noite, ele e ela estavam convencidos de que jamais tinham amado alguém tão intensamente. Mas não demorariam muito a perceber quanto isso é insignificante para que duas pessoas permaneçam juntas.