Archive for Novembro, 2008

Você prefere a calma ou a intensidade no amor?

26/11/2008

?

Cris e Pedro tinham acabado de sair do novo filme de Woody Allen, Vicky e Cristina. Não era um grande Woody Allen, mas Woody Allen é sempre Woody Allen. Mesmo quando faz um filme menor, vale a pena ver. As obras supremas de Woody Allen ficaram lá para trás. Annie Hall primeiro, depois Manhattan. (Pena que Mariel Hemingway, a garota inocente de Manhattan, tenha envelhecido. O tempo poderia ter parado para ela, para que jamais perdesse os olhos ensolaradamente sonhadores.) O último grande Woody Allen foi A Era do Rádio.
Era mais ou menos isso que Pedro falava depois da sessão, enquanto se dirigiam à Lanchonete da Cidade para comer um sanduíche que leva o nome estranho de bombom.
“O Contardo deu uma pancada na frase essencial da Scarlett”, disse Cris. Ela falava de Scarlett Johanson, que é a Cristina do filme. “Aquela em que ela afirma que não sabe o que quer, mas que tem clareza no que não quer. Vou te dar o artigo dele pra ler.”
“Qual o ponto dele?
“Ele disse que é uma coisa muito infantil. Quem diz que sabe o que não quer se fecha a novas experiências. Pra ele é uma frase covarde e medrosa.”
“Você concorda?”
“Vou te dizer. Aquela frase eu uso com muita freqüência. Eu sei o que não quero”, disse Cris.
“O filme trata exatamente disso”, disse Pedro. “Do medo. Se você tem que optar entre uma história de amor morna que te traga segurança ou uma paixão que te transporte ao céu e ao abismo, o que você faz?”
“Uma coisa morna, nem pensar”, disse Cris. “Sem intensidade você não tem nada no amor.”

No filme, Javier Bardem é um pintor espanhol que vive em Barcelona e faz telas incompreensíveis, mas que desfruta de grande prestígio entre as mulheres. Vem de uma separação atormentada de Penélope Cruz, e está querendo levar para a cama Vicky e Cristina. São duas garotas americanas que foram passar as férias de verão em Barcelona, onde conhecem Javier, a cujo encanto sucumbem.
Javier e Penélope são o símbolo da paixão neurótica. Não funciona. Vicky tem um noivo americano, Doug, um cara certinho e bem-sucedido, mas pelo qual ela não é apaixonada. Vicky e Doug representam a mornidão amorosa.

A tempestade ou a calmaria, o que dá mais certo num caso de amor? É possível um amor ser intenso sem ser neurótico? Uma relação pode ser calma sem ser enfadonha? Esta a maior discussão que o filme traz.

“Aquele beijo”, diz Cris.
Ela se referia ao comentado beijo de Penélope Cruz em Scarlett Johanson. As duas acabam formando um triângulo fracassado com o pintor.
“Achei forçado”, diz ela. “Elas não pareceram gostar de ter se beijado no filme.”
“Concordo. O triângulo ali parecia apenas marketing. Uma mulher ciumenta como a Penélope é no filme jamais aceitaria um triângulo amoroso. A mulher ciumenta morre se vê seu homem com outra mulher”, diz Pedro.
“Você, Pedro. Quem você preferiu, a Penélope ou a Scarlet?”
“A Penélope é muito exagerada. Sou mais a Scarlet.”
“Por que os homens são fascinados pelas loiras?”, disse Cris. “É uma coisa tão … tão infantil.”
“Não sou fascinado pelas loiras”, disse Pedro. “Só falei que prefiro a Scarlet à Penelope.”
“Pedro.”
“Cris.”
“Detesto coisas mornas.”
“Eu também.”
E então, estabelecido o pacto antigelo, dedicaram-se ao sanduíche glorioso da Lanchonete da Cidade.

Você prefere a calma ou a intensidade no amor?

26/11/2008

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Cris e Pedro tinham acabado de sair do novo filme de Woody Allen, Vicky e Cristina. Não era um grande Woody Allen, mas Woody Allen é sempre Woody Allen. Mesmo quando faz um filme menor, vale a pena ver. As obras supremas de Woody Allen ficaram lá para trás. Annie Hall primeiro, depois Manhattan. (Pena que Mariel Hemingway, a garota inocente de Manhattan, tenha envelhecido. O tempo poderia ter parado para ela, para que jamais perdesse os olhos ensolaradamente sonhadores.) O último grande Woody Allen foi A Era do Rádio.
Era mais ou menos isso que Pedro falava depois da sessão, enquanto se dirigiam à Lanchonete da Cidade para comer um sanduíche que leva o nome estranho de bombom.
“O Contardo deu uma pancada na frase essencial da Scarlett”, disse Cris. Ela falava de Scarlett Johanson, que é a Cristina do filme. “Aquela em que ela afirma que não sabe o que quer, mas que tem clareza no que não quer. Vou te dar o artigo dele pra ler.”
“Qual o ponto dele?
“Ele disse que é uma coisa muito infantil. Quem diz que sabe o que não quer se fecha a novas experiências. Pra ele é uma frase covarde e medrosa.”
“Você concorda?”
“Vou te dizer. Aquela frase eu uso com muita freqüência. Eu sei o que não quero”, disse Cris.
“O filme trata exatamente disso”, disse Pedro. “Do medo. Se você tem que optar entre uma história de amor morna que te traga segurança ou uma paixão que te transporte ao céu e ao abismo, o que você faz?”
“Uma coisa morna, nem pensar”, disse Cris. “Sem intensidade você não tem nada no amor.”

No filme, Javier Bardem é um pintor espanhol que vive em Barcelona e faz telas incompreensíveis, mas que desfruta de grande prestígio entre as mulheres. Vem de uma separação atormentada de Penélope Cruz, e está querendo levar para a cama Vicky e Cristina. São duas garotas americanas que foram passar as férias de verão em Barcelona, onde conhecem Javier, a cujo encanto sucumbem.
Javier e Penélope são o símbolo da paixão neurótica. Não funciona. Vicky tem um noivo americano, Doug, um cara certinho e bem-sucedido, mas pelo qual ela não é apaixonada. Vicky e Doug representam a mornidão amorosa.

A tempestade ou a calmaria, o que dá mais certo num caso de amor? É possível um amor ser intenso sem ser neurótico? Uma relação pode ser calma sem ser enfadonha? Esta a maior discussão que o filme traz.

“Aquele beijo”, diz Cris.
Ela se referia ao comentado beijo de Penélope Cruz em Scarlett Johanson. As duas acabam formando um triângulo fracassado com o pintor.
“Achei forçado”, diz ela. “Elas não pareceram gostar de ter se beijado no filme.”
“Concordo. O triângulo ali parecia apenas marketing. Uma mulher ciumenta como a Penélope é no filme jamais aceitaria um triângulo amoroso. A mulher ciumenta morre se vê seu homem com outra mulher”, diz Pedro.
“Você, Pedro. Quem você preferiu, a Penélope ou a Scarlet?”
“A Penélope é muito exagerada. Sou mais a Scarlet.”
“Por que os homens são fascinados pelas loiras?”, disse Cris. “É uma coisa tão … tão infantil.”
“Não sou fascinado pelas loiras”, disse Pedro. “Só falei que prefiro a Scarlet à Penelope.”
“Pedro.”
“Cris.”
“Detesto coisas mornas.”
“Eu também.”
E então, estabelecido o pacto antigelo, dedicaram-se ao sanduíche glorioso da Lanchonete da Cidade.

Balzáqueas 17

19/11/2008

“Numa história de amor, é preciso trair para não ser traído.”
Balzac

Toda mulher sonha em fornecer a seu homem uma história digna de virar um romance

19/11/2008

Há livros que é uma alegria fechar, lidas ou não todas as páginas. Não lidas, de preferência.
São os livros ruins. Ou desnecessários. Você entra numa livraria como a Culrura e vê aquelas pilhas de livros. Alguns podem ficar impressionados. A mim, o que ocorre é: Deus, quantos livros inúteis há nesta imensidão de papel, nesta orgia literária.. Quantas árvores poderiam não ser sacrificadas se fosse feita uma triagem mais rigorosa entre os autores.
Sou um escritor barato. Há um livro meu publicado. Tenho a sensação de que a humanidade bem poderia passar sem minhas páginas baratas. Algumas árvores falecidas em meu nome talvez me agradecessem se eu fosse mais severo em relação a mim mesmo.

Há também livros que é uma tristeza fechar, tamanha a beleza e a sabedoria do conteúdo. Tirá-los de seu criado mudo, uma vez lidos, é como despedir-se de alguém querido numa estação de trem. Dói. Você acaba de lê-los e sabe que jamais será o mesmo. Alguma coisa em você mudou, e para melhor. São os livros necessários, em oposição aos inúteis. Alguns são imprescindíveis. Os Maias, por exemplo. Aquele final. Os dois grandes amigos, Carlos e Ega, vagando pelas ruas tristes de Lisboa, anos depois da ruína de seus sonhos de jovens. “Falhamos a vida”, diz um ao outro. “Mas a vida que planejamos nunca é a que ocorre”, diz o outro. Estou escrevendo de memória. Sem precisão. O sentido é este, de toda forma. Nunca fui o mesmo depois de Os Maias, para ficar num caso.

Cris, naquela noite úmida de primavera, estava se despedindo com tristeza de um livro que para ela era indispensável. Travessuras da Menina Má, de Vargas Llosa. Vargas Llosa é um romancista brilhante. O maior entre os autores latino-americanos contemporâneos. Cris estava com o cabelo preso num rabo de cavalo, e usava um vestido leve comprado no Mercado Modelo de Salvador, o que lhe dava um certo ar de personagem de Jorge Amado, outro construtor de obras necessárias.

“Não quero terminar”, disse ela. “Estou economizando as últimas páginas. Como a menina má fica no final?”

Os melhores personagens da literatura raramente terminam bem. Sobretudo as mulheres. Penso aqui comigo por que as feministas não se insurgiram contra a crueldade imposta às mulheres na literatura. Maria Eduarda, de Os Maias, por exemplo. Terminou se apaixonando, por acidente, pelo irmão do qual fora afastada menina. Ainda bebê. Perdera o contato por completo e não sabia que aquele homem que a fascinou imediatamente era seu irmão há tantos anos afastado. Capitu traiu Bentinho e foi morrer solitária e amargurada no exílio europeu. Ana Karenina, casada dentro da melhor sociedade russa, sucumbiu à sedução de Vronski e terminou se atirando sob as rodas de um trem. Madame Bovary, atormentada pelo adultério, se matou.

Todas se deram mal. Por que a menina má, provavelmente a melhor personagem feminina criada pelo gênio de Llosa, se daria bem?

Quem quiser ler o livro, e se incomodar com informações sobre o final, é melhor que pare aqui.

Bem, a menina má, uma maravilhosa peruana cosmopolita que tem atitude de dona do mundo, uma fêmea diante da qual se prosternam machos de todas as partes em busca de seus favores sexuais, tem um final ruim. Um câncer a devasta. Aqueles seios que fariam um bispo convicto hesitar diante de sua escolha pelo sacerdócio foram massacrados pelo câncer. Philip Roth, também um escritor necessário, também acabou com o seio de uma jovem deslumbrante num romance que recentemente se transformou num filme, Fatal. O filme fica na estranha faixa entre o que não é nem útil e nem inútil, ao contrário do livro de Roth.

Um homem tivera pela menina má de Llosa um amor incondicional. O menino bom. Sempre a acolhera, sempre a aceitara. A paixão com a qual toda mulher sonha, mas que infelizmente só parece existir na ficção. Na vida concreta, homens – e mulheres – têm baixa tolerância em relação a seus amores. Num livro de Le Carré, outro romancista necessário, um personagem diz que as mulheres que lhe deram um tapa jamais tiveram a chance de dar um segundo.

A menina má, perto da morte, diz a seu apaixonado fiel que, depois de tanto frustrá-lo, lhe deu um grande presente. O menino bom sempre tivera preguiça de escrever um romance. Agora tinha material. “Eu te dei uma boa história para seu romance”, diz ela. “Um amor que se eternize nas páginas de um livro.”

Cris fecha por um momento o livro e os olhos castanhos que são excepcionalmente observadores. Pensa em Pedro, que como o menino bom há tempos tem um romance nos seus planos. Um leve sorriso em seus lábios carnudos parece dizer que ela está certa de que dará a ele, como a menina má, uma história que se transforme num romance.

“Você está entediado com a vida?”

03/11/2008


“Achei uma revista velha”, disse Cris pela manhâ. “Vi um artigo que gostaria que você lesse.”

Cris guardava revistas às vezes durante anos. Tinha fascínio por revistas. Impressas, não digitais. Revistas para admirar as grandes fotos, o papel soberbo, os textos profundos, as idéias de pauta originais. Cris acabara de acordar, e vestia uma camisa branca e uma calça preta. Estava apressada. Tinha uma reunião de trabalho dali a pouco tempo.
A revista da qual ela falava pregava a simplicidade. Cris prezava a vida simples, exceto na gastronomia e na moda. Gostava de receitas refinadas, e sua comida era admirada, cobiçada e devorada pelos amigos. E tratava com esmero de seu guarda-roupa, enriquecido fazia pouco tempo por uma peça Putti de um colorido exuberante. O artigo específico tratava de uma opção de vida simbolizada por dois filósofos gregos. Um, Heráclito, chorava diante da miséria humana. Traições, decepções, falsidades. O outro, Demócrito, ria. Montaigne usou em seus Ensaios os dois gregos para defender o riso como resposta à miséria humana, e não o choro. O autor do artigo que Cris dera a Pedro para ler falava disso tudo para defender a manutenção do humor no correr dos longos dias e dos inevitáveis tropeços. Sêneca usara uma expressão que Pedro gostava de citar para definir a vida: “um perpétuo vai-e-vém de elevações e quedas”. O sábio, segundo Sêneca, suporta as quedas, e não se deixa enganar e deslumbrar pelas elevações.
“Tem uma frase neste artigo que vou adotar para mim imediatamente”, disse Cris.
“Hmmm”, murmurou Pedro.
Pedro estava lendo texto, e pensou em qual seria a frase de que falava Cris enquanto arrumava o cabelo para a reunião. Não chegou a nenhuma conclusão. Heráclito? Demócrito? Montaigne?
Não. A frase que a marcara no artigo era de um general romano, Mário. Era um exemplo soberbo do humor e sabedoria pregados por Demócrito. Desafiado para um duelo de morte por um chefe bárbaro, Mário , segundo relatos de historiadores, respondeu-lhe: “Você está entediado com a vida? Então, se enforque.” E foi embora, alegremente.
“Vou adotar as palavras daquele general como lema”, disse Cris. “Quando vierem me incomodar por nada, como é tão comum, vou virar e dizer: tá entediando com a vida? Se enforca.”
Riu, deu um beijo rápido em Pedro e saiu rumo à reunião e a suas recém-adquiridas ofertas de enforcamento.