Ouvi no meu iPod o tema de Era Uma vez na América, o grande filme de Sergio Leone, o gênio italiano do cinema. O autor do tema é Enio Morricone, outro gênio italiano. É uma melodia que me comove, e simplesmente lembrar do filme me faz suspirar fundo. Leone foi o mestre, o inovador dos focos dramáticos em rostos dos personagens, sobretudo olhos, sob o som sublime dos temas de Morricone.
Para mim, Leone foi um caso de amor à primeira vista, ou semivista. Vi, em Ribeirão Preto, Quando Explode a Vingança, de Leone, a história de dois amigos improváveis, um bandoleiro mexicano e um terrorista irlandês, durante uma tentativa de revolução popular no México. Era a última sessão de cinema, e como é linda e triste essa expressão, última sessão de cinema, e eu dormi a maior parte do tempo. O que vi, porém, foi suficiente para eu sair daquele cinema de Ribeirão outro cara.
Vi Era uma vez na América, a obra magna de Leone, pela primeira vez numa cópia precária na qual prolongados minutos não tinham som. Fui arrebatado. A cena final. O reencontro entre dois amigos, muitos anos depois. Eles tinham se amado tanto na juventude. Eram amigos como Montaigne define a amizade, uma união entre duas almas tão perfeita que você sequer nota a costura. Compartilharam coisas que criam laços poderosos entre homens: cresceram juntos, aprenderam a beber e a amar mulheres juntos, começaram a carreira – de ganguesteres – juntos.
Não foi um reencontro feliz. Um deles, o personagem interpretado por Robert de Niro, fora traído. O traidor fingiu que morreu num assalto feito pela quadrilha que ambos comandavam. Levou o dinheiro todo, deixou o amigo com a tristeza imensa de uma morte que não acontecera afinal, e ainda surrupiou a mulher devotadamente amada pelo homem enganado. O traidor (James Woods) olha para o grande amigo com a esperança de que a memória do tempo em que se amavam tanto dissipe a mágoa, a desilusão, a dor aguda e penetrante da traição. Não. E então a câmara dá um foco perturbador, e eis Leone no seu prime time, no rosto, nos olhos, na expressão de de Niro, sob a melodia tristemente bela de Enio Morricone. “Uma vez conheci um cara, e ele era o melhor amigo que alguém poderia ter”, diz o homem traído. “Mas ele morreu.” E ele vai embora.
Tantas vezes, com mulheres ou com amigos, como amigos ou como amantes, traímos alguém e, como o personagem de James Woods, esperamos pelo milagre do perdão, como se o que fizemos para destruir coisas como fé, confiança pudesse ser amortecido ou mesmo neutralizado sei lá pelo quê.
Mas é um esforço vão, e vão, e vão. A vida nos impõe preço para tudo, para cada um dos nossos atos, e não há como regatear. Um dos preços mais altos, como viu o amigo infiel de Era Uma vez na América, é aquele que pagamos por trair quem um dia acreditou, confiou em nós. Na verdade dificilmente perdoamos a nós mesmos nestas situações. E então me ocorre uma frase de Graham Greene, meu romancista amado. “Esquecemos os que os que amamos, mas não esquecemos os que traímos.”