Archive for the ‘Fabio Hernandez – O Homem Sincero’ Category

Ocupe-se de pouco para ser feliz

30/06/2011

Penny Lane me cobra: “Cadê seus textos, Hombre?”

Onde estão?

Bem, o trabalho de mais de mais de uma década está aqui, neste blog. Mas não é isso que ela quis dizer.

“Os novos, Hombre.”

Explico para ela que reli uma frase de Heráclito que anotei há muito tempo.

“Ocupe-se de pouco para ser feliz”, diz a frase.

“E?”

Ora. Tenho desrespeitado por uma vida inteira uma máxima que eu decidira adotar para mim. Alguém aí falou em autoboicote?

Isso quer dizer que me concedo, merecida ou imerecidamente, férias. Rumo a sei lá onde. A mim mesmo, talvez.

Para me ocupar de pouco.

Quase nada.

Nada, quem sabe.

Neste mundo em que tudo fenece

25/06/2011

Uma mulher me esperava no restaurante. Ela sempre chegava um pouco antes; eu sempre um pouco depois. Fazia muito tempo que não a via, mas certos hábitos jamais se alteram. Vi que ela folheava um livro, acomodada numa mesa para dois. Ela sempre tinha um livro à mão para a hipótese de eu demorar mais que o razoável. O livro que ela lia naquele momento, vi depois, era uma pequena biografia de Marcel Proust sobre a qual eu escrevera numa revista.

Era Mariza.
Ela estava de volta à cidade por uns dias para visitar a mãe. Mariza, depois que rompemos, conheceu uma fazendeiro de Mato Grosso. Logo se casaram e ela mudou para lá para viver seu novo amor bucólico.

“Tudo bem?”, perguntei.
“Graças a Deus.”
Rimos e o gelo se quebrou. Era uma piada particular nossa. Mariza é atéia. Ela jamais acreditou em Deus. Num certo momento, deixou de acreditar também em mim. Foi aí que nosso romance começou a terminar. Reencontros com amores passados servem para mostrar muita coisa. Mostram, por exemplo, como uma intimidade construída em anos pode ser dissolver instantaneamente com o rompimento. Você trata com cerimônia constrangida alguém com quem, até pouco antes, tinha a mais absoluta liberdade. Só falta a gente dar continência ao outro.

“A melhor coisa que você fez por mim, em muito tempo, foi indicar na revista este livro”, ela disse. “Sou realmente muito grata a você.” Era a Mariza de sempre, irônica, às vezes ferina mesmo num banal agradecimento pela indicação de um livro.

“Uma frase”, ela continuou. “Tem uma frase neste livro que talvez seja a mais linda que eu já li. E a mais triste também.” Ela me passou o livro aberto numa determinada página. Nessa página, uma sentença estava sublinhada. Mariza costuma sublinhar as frases de que mais gosta nos livros que lê. Eu tentei muitas vezes fazer o mesmo, mas minha falta de método jamais me permitiu consolidar esse hábito. Me impressionei ao saber que Vargas Llosa faz uma ficha de cada livro que lê. Pensei em copiá-lo, mas meu lado caótico me impediu.

Li a frase sublinhada por Mariza. Ela tinha razão. É uma das frases mais tristes que alguém já escreveu. Proust disse: “Nesse nosso mundo onde tudo fenece, tudo perece, há uma coisa que se deteriora, que se desfaz em pó até de forma mais completa, deixando para trás ainda menos traços de si do que a beleza: a saber, a dor”.

A dor. A dor da perda de um amor. A gente imagina que vai morrer sem ele. Como dói aquela ausência. Como dói a perspectiva de nunca mais ter nos braços alguém que a gente imaginava ao nosso lado para sempre. Nunca mais. E no entanto quando aquela dor torturadora se vai, vencida enfim pelo correr dos longos dias, o que sentimos não é alívio, mas vazio e frustração. É como se pensássemos: o grande amor exige uma dor eterna, um luto no coração até o último dia. Só que a dor, como disse Proust, dura ainda menos que a beleza.

Devolvi o livro a Mariza e trocamos de assuntos. O resto do almoço foi, quase todo, alegre. Lembramos certas passagens de nosso romance como na cena final de um dos meus filmes preferidos, Annie Hall, de Woody Allen, e rimos. Lembramos, por exemplo, o dia em que entramos por acaso numa festa de firma num bar do Terraço Itália e acabamos comendo mais, bebendo mais e rindo mais do que qualquer pessoa naquele salão. Lembramos a madrugada bêbada numa boate em que uma dama da noite recomendou compostura a Mariza. Quando Mariza ameaçou entrar em lembranças menos amenas, e delas extrair uma raiva que o tempo foi incapaz de mitigar, entendi que era a hora de pedir a conta. Certas histórias, é melhor não desenterrá-las, escreveu Shakespeare. Concordo.

E então nos despedimos. Sem drama. Ela refizera sua vida e eu a minha. Ela voltava para Mato Grosso e eu para minha rotina de escritor barato. Um novo e promissor capítulo amoroso se instalara na vida de Mariza, e a verdade é que meu coração voltara a bater rápido, bem rápido, por uma mulher. Já não doía como doera nem nela nem em mim, mas ali compreendi com clareza que a morte da dor amorosa também pode, de uma forma estranha, doer.

O jornalista e a massagista

22/06/2011

Peter estava deitado na grama do Hurlingham Park ao lado de Tania, a Ibiza Angel ucraniana que conhecera no Empire, o cassino da Leicester Square. Sob o sol de maio, os cabelos loiros de Tania pareciam brancos. Os olhos eram azuis como duas bolas de gude.

Peter olhou para Tania e riu sozinho. As mulheres da União Soviética durante muito tempo pareciam ser todas elas gordas e desinteressantes. Era o que a imprensa americana espalhava para o mundo. Foi com uma certa surpresa que, com o colapso soviético, Peter viu emergirem tantas mulheres bonitas. Uma delas estava ali a seu lado. Tania passava delicadamente proteção no rosto de Peter antes de jogarem tênis na quadra de grama sintética do parque. Tania fizera questão de ensinar uma única palavra de ucraniano a Peter.  Lyubov. Te amo.

Peter gostava de ir ao Hurlingham. Nos finais de semana, via partidas de futebol e rugby de amadores. Era um parque com o espírito igualitário londrino. Antes, o terreno fazia parte do Hurlingham Club, um dos clubes mais fechados de Londres. O governo trabalhista que substituiu a administração de Churchill depois da Segunda Guerra desapropriou um pedaço do clube e transformou-o num parque público. As regras do esnobe jogo de pólo a cavalo tinham sido definidas, no passado, no clube. Hoje já não se jogava mais pólo lá, mas principalmente tênis em suas belas quadras de grama tão bem cuidadas quanto as de Wimbledon.

“Peter?”

“Hmmm.”

“Ele não para de me procurar.”

Ele era Assange. Peter levara Tania para a entrevista que fizera com Julian Assange. A conversa foi durante um almoço no Pizza Express da estação de Fulham Broadway. Peter gostava de comer a lasanha de lá, sentado numa mesa à beira da janela que lhe dava uma versão quase panorâmica da Fulham High Street. Sempre que ia a jogos do Chelsea no Stamford Bridge, o estádio ali perto da estação, passava depois pela Express para comer a lasanha.

Peter reparou que Assange gostara da presença de Tania, mas não imaginou que ele fosse tentar nada. Como ele conseguira seu email? Entrara, será, como hacker no site do Empire, depois de saber durante o almoço que Tania era massagista lá?

Ouvira dizer que o fraco de Assange eram as mulheres. Uma australiana com quem ele saiu algumas vezes o definiu como um “homem que não sabe ouvir um não”.

Assange dissera a Peter que em breve iria à Suécia. Peter conhecia bem a Suécia. Assange com sua insistência poderia ter problemas lá. As mulheres suecas são neuróticas. Parecem ávidas por acusar homens de estupro. Peter levara um susto quando, numa viagem à Suécia, um jornalista local lhe dissera que você pode ser acusado de estupro na Suécia se fizer sexo sem proteção. Suponha que uma mulher aceite ir para a cama com você. Vocês, antes de dormir, fazem o que têm que fazer. Se você acorda no meio da noite e retoma a festa, pode ter problemas se estiver sem preservativo. “Se você sair com uma sueca, peça antes de dormir com ela um documento em que ela diz que está com você consensualmente”, disse a Peter o jornalista sueco.

“Por que você não sai com ele, Tania?”, disse Peter. “Ele é o jornalista mais célebre do mundo hoje. Um herói para muita gente.”

“Peter. Você acha mesmo que eu sairia com um cara que cheira como se não tivesse tomado banho há dias?”

Peter riu. Era verdade. Assange parecia estar muito entretido em salvar o mundo para ter tempo de tomar banho.

O que sentia por ela? Era uma pergunta que vinha ocorrendo a Peter algumas vezes nas últimas semanas. Desejo, com certeza. Curiosidade, também. E um sentimento de proteção. Gostaria de evitar que o mundo fizesse Tania sofrer.

Mas e amor?

Isso Peter não sabia. Como ficaria se Tania desaparecesse de sua vida? Triste, é certo. Mas por um dia, uma hora ou uma eternidade?

“Peter?”

“Hmmm.”

“Hoje eu vou dar de zero em você.”

Não era difícil. Tania quase fora profissional de tênis. E era vinte anos mais nova que Peter.

Uma hora depois, saíram da quadra. Tania ia tomar um banho no apartamento de Peter antes de ir para o Empire.

“Eu não disse?”, ela falou ao se cumprimentarem na rede terminado o jogo.

Ele olhou para ela. Sentiu seu suor ao beijar seu rosto na rede, e pensou que nunca experimentara uma derrota tão vitoriosa.

Choro de fêmea

13/06/2011

 

Um estudo científico internacional afirma que o homem rejeita sexualmente a mulher que chora.

Até o cheiro da lágrima afugentaria.

Pois eu discordo. A ciência, neste caso, está inteiramente errada.

A chorosa fascina porque é mulher na essência.  Vulnerável, desprotegida, pronta a ser socorrida – e depois se Deus ajudar penetrada – pelo seu salvador.

Quanto ao chorão, ele sim é repulsivo. Fica desfigurado, revela sua fraqueza patética e mostra à mulher que ela não pode contar com ele nos apuros.

Lembro sempre de uma frase de Sêneca: “As lágrimas dos fracos secam as minhas.”

Perfeita!

09/06/2011

A perfeição pode ser alcançada (um quadro de Alfonse Mucha)

Veja se você, mulher leitora, se enquadra no ideal masculino de perfeição feminina.

A Perfeita — abreviemos — faz as seguintes coisas.

1) Prefere ouvir a falar. Entende que, se a natureza lhe deu uma boca e dois ouvidos, não foi à toa.

2) Gosta mais de ação do que de discussões sobre o relacionamento. Até porque, se o relacionamento está ruim, é provavelmente por falta de ação.

3) Não recusa sexo mesmo que esteja de verdade com dor de cabeça. Recusas femininas matam qualquer relacionamento.

4) Está sempre bonita e cheirosa para o amado.

5) Não fuça o gmail, o Facebook e o Twitter dele. Jamais. É invasão de privacidade.

6) Faz coro quando seu amado canta, mesmo que seja desafinada. Linda McCartney fazia isso para o marido, e o manteve a seu lado até a morte.

7) Não disputa a razão com seu homem. Não tenta parecer melhor ou mais inteligente que ele, mesmo que seja. Nestes casos, delicadamente finge ser mais tola do que na verdade é.

8 ) Respeita o cansaço do guerreiro quando ele prefere simplesmente dormir a praticar sexo. Caso esteja muito excitada, pode sempre usar as próprias mãos, pelas quais não paga nada.

9) Entende que as preliminares devem ser satisfatórias para ambas as partes, e não só para ela.

10) Não olha para homem nenhum lascivamente, mas compreende que em certas situações o amado não cometerá pecado se — discretamente — admirar uma mulher atraente que entre no bar ou no restaurante. Porque na verdade toda a raça feminirá estará sendo homenageada naquele olhar clínico e fugaz, incluída a própria mulher amada.

Existem outros pontos. Mas eles tornariam a mulher mais que perfeita, o que é desnecessário. Basta se aplicar no decálogo acima.

‘Ter uma mulher apenas é como usar a mesma meia a vida inteira’

05/06/2011

Leio um livro em que é narrado um encontro amistoso entre muçulmanos e ocidentais.

As pessoas estão num clima tão positivo que não escondem suas curiosidades essenciais.

Um não muçulmano quer saber se um homem com várias esposas pode, eventualmente, dormir com mais de uma na mesma cama.

E um muçulmano manifesta assim sua perplexidade diante da proibição imposta aos ocidentais de ter mais de uma mulher: “É como usar a mesma meia a vida inteira!”

Me pergunto se as mulheres poderiam ter a mesma opinião. Um homem apenas seria o equivalente a usar a mesma calcinha a vida inteira?

Uma garota de programas de Berlim

04/06/2011

Raras vezes vi um entrevistador tão bom. Faz as perguntas que todos queremos fazer. Mas é para a entrevistada que quero chamar a atenção.

Ela é um retrato de como a Alemanha lida com a prostituição.

É uma atitividade legalizada. Isso faz com que as garotas de programa sejam muito menos marginalizadas que habitualmente. Elas pagam impostos, o que as iguala a todos nós, exceto os muito ricos, que sempre encontram formas de fugir deles. Podem até ter namorados, como todas as mulheres. A legalidade tira muito muito do tom sinistro que afasta pretendentes. E também pode permitir uma vida menos mentirosa e, consequentemente, menos sórdida. A garota do vídeo diz que a família e os vizinhos sabem o que ela faz, e não duvido.

A prostituição jamais terminará. É um dado da vida, gostemos ou não. Isto posto, ela pode ser mais ou menos complicada. Os alemães dão ao mundo uma lição sobre como descomplicar ao máximo uma atividade que jamais será simples.

Hoje eu vou te mandar pra …

28/05/2011

Certas músicas valem por um tratado de relacionamentos.

Esta, dos Mutantes, por exemplo. Dedico-a a todas as mulheres que passaram pela minha vida. Imagino-as, uma a uma, mãos dadas no coro da música: “Atchuru!”

 

 

 

A volúpia e os prazeres segundo La Fontaine

27/05/2011

Penny Lane me passa um poema de La Fontaine.

Concordo em parte com a tese dele, não com o todo. Mesmo assim, faço questão de compartilhar.

Amar, foder: uma união
De prazeres que não separo.
A volúpia e os prazeres são
O que a alma possui de mais raro.
Caralho, cona e corações
Juntam-se em doces efusões
Que os crentes censuram, os loucos.
Reflete nisso, oh minha amada:
Amar sem foder é bem pouco,
Foder sem amar não é nada.

Penny Lane e Ruby Tuesday

19/05/2011

E eis que depois de séculos reaparece Penny Lane. Quer dizer, reaparece virtualmente. Está no Skype, gloriosa em seu vestido da Primark que permite ver o violino de Man Ray tatuado em suas costas.

Penny Lane não está sozinha. Está com Ruby Tuesday num bar.

Estão bêbadas o suficiente para não se importar com o fato de que me acordaram.

“Fabio, Fabio”, as duas gritam alvoroçadas.

São duas mulheres jovens, bonitas, desinibidas.

“Vem pra cá.”

Talvez eu até fosse, mas é um tanto quanto longe o bar.

“Queria te fazer uma surpresa”, diz Penny Lane. Os óculos dão a ela um ar de intelectual.”Queríamos.”

E então as duas se beijam diante da câmara, para mim. Parecia o beijo que Bogart dá em Ingrid Bergman em Casablanca. Apenas eram duas Ingrids.

Pensei se dariam um passo a mais. Penny Lane tem um piercing na forma de cruz no mamilo esquerdo. Será que Ruby avançaria nele?

Não. Não, pelo menos, na minha frente.

Elas estavam rindo.

“Nossa, estamos causando neste bar, que é totalmente careta”, disse Ruby.

O que levava duas mulheres atraentes como aquelas duas a se beijarem na minha frente? Faltam homens na cidade? Sentiriam uma misteriosa curiosidade sexual uma pela outra, mesmo sem serem lésbicas? Quanto a mim, me toma uma certa sensação de desperdício quando vejo duas mulheres se agarrarem. Mulheres bonitas, naturalmente. Se são feias, não me importo.

Penny Lane uma vez me disse que em certas ocasiões gosta da delicadeza de uma mulher. Parece que Ruby também. É extremamente feminina, com seu rabo de cavalo e os olhos da cor da lagoa de Itapoã, e no entanto parece comandar como um homem Penny Lane naquela mesa de bar.

Talvez nós, homens, sejamos muito grosseiros sexualmente. Minhas mãos não deslizam delicadamente pelo corpo de uma mulher, mas com voracidade crua.

Nos despedimos, e elas desligam o Skype.

Antes de voltar a dormir, penso na cena. E me pergunto o que eu faria se estivesse lá, ao vivo, com Penny e Ruby. Múltiplas possibilidades matemáticas, como diz um personagem de Woody Allen ao contar para um amigo que estava namorando com duas gêmeas.

E então volto a dormir.

É melhor que seja nada, e não pouco, o que antes foi tudo

16/05/2011

E então terminou assim.

Você não cuidou de mim e me perdeu.

Espero que me perder não doa em você. Tenho a impressão de que não dói, exceto por alguma coisa localizada nas proximidades do orgulho e do amor próprio.

Coloquemos assim. Que doa o menos possível.

Você refez sua vida, e eu a minha. É sempre isso, não é?

Qual o ponto em fingirmos que é possível ressuscitar um sentimento morto, uma esperança que se perdeu gota a gota no decorrer dos dias em que estivemos juntos?

Amor já não posso dar. Amizade, não quero dar. Uma vez escrevi que é melhor que seja nada, e não pouco, o que anteriormente foi tudo.

E no entanto numa improvável emergência, e só nessa situação, você sabe que farei o possível para ajudar.

Meus planos já estão em outra direção, e os seus imagino também. Minha semente brotará em outro destino, e já não há nada que possamos fazer em relação a isso.

Aprendemos algumas coisas um com o outro.

Fiquemos com isso, que não é pouco.

O violino de Man Ray

10/05/2011

“Eu adoraria tocar violino”, Peter falou. “Um tio meu dizia que se você toca um instrumento nunca está sozinho.”

Ele estava passando os dedos pelas costas de Tania. Parecia hipnotizado pela tatuagem, reproduzida de uma foto de Man Ray de 1924 que foi uma das primeiras imagens surrealistas, “O Violino de Ingres’. Man Ray homenageara ao mesmo tempo o corpo feminino, comparado à beleza de um violino, e Ingres. Sua foto remetia à “Banhista de Valpinçon”, de Ingres, uma de cujas paixões era tocar violino.

Estavam na cama do apartamento de Peter em Londres. Tania estava suada, e Peter gostava de seu cheiro assim. Tinham acabado de dar uma volta de bicicleta pelo Bishops Park. O Bishops tinha este nome porque os bispos de Londres ficavam hospedados num palácio ali. Foram margeando o Tâmisa até o final do parque, no ponto em que aparece o estádio do Fulham. Quando estava só, Peter parava ali e se sentava no banco para ler. Sempre ficava por uns instantes também vendo um carvalho de mais de 500 anos do parque, um formidável desafio ao conceito budista de impermanência. Ao chegarem do passeio de bicicleta, Tania quis tomar banho, mas Peter não deixou.

“Peter?”

“Hmmm.”

“E se eu estiver grávida?”

“Vai ser uma festa. Uma festa de nove meses, Tania.”

Peter fora tomado, nos últimos meses, pelo impulso de espalhar sua semente pelo mundo. Dissera isso a Claudio, que respondera que era uma resposta infantil e imatura ao sentimento de mortalidade que fatalmente ataca um homem de meia idade.

“Você não vai esquecer que eu sou mulher, Peter?”

Não era a primeira vez que Tania falava nisso. Ela tinha medo de que um filho levasse o pai da criança a tratá-la não mais como mulher mas como mãe.

“Como eu poderia esquecer?”, pensou Peter, os olhos ainda fixados na tatuagem.

Virou-a então para si e se dedicou mais uma vez à tentativa — imatura e infantil, segundo Claudio, mas absurdamente agradável — de espalhar sua semente.

O decálogo do homem fino

03/05/2011

Você é um homem fino?

Moralmente, quero dizer.

É fácil testar. Veja como você se enquadra nos dez tópicos abaixo. Tirei-os de um homem de letras da Inglaterra do século XVIII, Lorde Chesterfield. Fazem parte das recomendações que, em cartas, ele fazia a seu filho.
1) Acima de tudo, evite falar de si mesmo.
2) É melhor recusar um favor com classe do que garanti-lo vergonhosamente.
3) Olhos e ouvidos abertos, e boca quase sempre fechada.
4) Piadas ruins e risada alta fazem você parecer um bufão.
5) Nunca pareça mais sábio e mais inteligente do que as pessoas que estão a ser redor.
6) Não admire nada exageradamente.
7) Faça apenas uma coisa por vez.
8)  A paciência é o único meio de fazer que as coisas ruins não piorem.
9) Seja sério, mas não enfadanho.
10) Fale com frequência, mas jamais longamente.

“Pode ser que existam casamentos bons. Mas casamentos divertidos, não.”

29/04/2011

Saudade do tempo em que as pessoas debatiam com verve, com paixão os assuntos trazidos aqui.
Para tentar reacender a chama, trago uma frase de Rochefoucauld, o genial autor de máximas francês do século 17. Não sei se concordo com essa frase, mas ela me fez pensar.
“Pode ser que existam casamentos bons. Mas casamentos divertidos, não.”

O clássico erótico que esqueci

28/04/2011

Fiz uma lista com os 10 melhores romances eróticos da história da literatura.

Só fui me dar conta da injustiça que cometi quando reli um grande livro no iPad: O Amante de Lady Chatterley, de DH Lawrence.

Não o coloquei na lista. Errei.

É um primor, e não apenas pelo intenso conteúdo sexual. A força da narrativa, a limpidez da prosa, o ritmo da história são primorosos.

Lady Chatterley merece um lugar ao lado de Madame Bovary, Capitu e Ana Karênina como uma das mais notáveis adúlteras da ficção. O marido, impotente e aleijado por um ferimento na Primeira Guerra, não a pode satisfazer como mulher. Ela tem fogo, e ele se transformou em gelo. O resto é consequência.

É tamanha a importância da obra de Lawrence que um intelectual situou o início do movimento de libertação sexual em algum ponto entre o fim do banimento de O Amante de Lady Chatterley e a chegada dos Beatles. (O livro permaneceu proibido do final dos anos 20 até o começo dos 60, sob o argumento de que é obsceno.)

Há uma sabedoria notável no romance de Lawrence.

Numa conversa, perguntam a um homem se ele acredita no amor. A resposta é não. “No que você acredita?, então?”, continuam. “Eu? Ah, intelectualmente eu acredito em ter um bom coração, um pênis firme, uma inteligência vívida e a coragem de dizer ‘merda’ na frente de uma dama.”

Sócrates não diria coisa mais sábia.

NO homem feliz é essencialmente o homem potente. Nm livro, Philip Roth conta o dilema de um homem entre a vida e a potência. Cardíaco, teria que tomar remédios que o inviabilizariam como amante. Ele prefere morrer potente.

São atuais e provocativas as conversas que você vê no livro de Lawrence sobre homens e mulheres em sua eterna luta para se compatilizar e se satisfazer sexualmente.

Lawrence traça um retrato soberbo da classe privilegiada inglesa nos primórdios do século XIX. O império britânico já começava a se desintegrar. Lady Chatterley, numa cena, é sodomizada pelo caseiro da propriedade de seu marido.

É simbólico.

Mais que apenas uma lady, era toda uma casta de privilegiados e esnobes – a upper middle class, cultivada ao longo de muitas décadas de exploração das colônias – que estava sendo submetida a uma sodomização da qual jamais se recuperaria inteiramente.

On Days Like These

26/04/2011

Peter e Tania estavam deitados na cama, invadidos pelo tédio pós-coito. Cada qual fumava um cigarro, como em filmes antigos.

“Que música era aquela?”, perguntou Tania em seu inglês com um charmoso acento ucraniano. “É tão, tão, tão linda.”

Peter gostava de colocar música na hora do sexo. Escolhera uma que ouvira num programa de rádio da BBC 2 apresentado por Elaine Page, uma grande cantora de musicais do lendário West End de Londres. Não poderia ser mais cafona, mais brega. Mas era profunda, verdadeira como só as músicas absurdamente românticas são. On Days Like These, cantada por Matt Munro, uma espécie de réplica britânica de Frank Sinatra nos anos 60. On Days Like These fora trilha sonora de um dos primeiros filmes de James Bond.

Era a história de um amor acabado, e de um homem que relembrava a mulher que amara. Peter cantarolou um trecho.

On days like these when skies are blue and fields are green
I look around and think about what might have been
and then I hear sweet music float around my head
as I recall the many things we left unsaid
it’s on days like these that I remember
singing songs and drinking wine
while your eyes played games with mine

“Me deu vontade de chorar”, disse Tania. “Será que um dia você …”

Ela parou no meio da frase. Peter notou que seus olhos verdes estavam molhados como o mar de Salvador. Estivou automaticamente os braços para confortá-la.

“Será que … você vai se lembrar de mim assim, no futuro? Um dia eu vou voltar para minha Ucrânia e você vai seguir sua vida de jornalista itinerante.”

Ele evitava pensar no futuro, porque era sempre fonte de apreensão, angústia, sofrimento. Lera em Epicuro que o sábio é um imprevidente, e procurava aplicar essa grande máxima a sua vida. Ninguém, exceto os loucos, olha para o futuro e vê coisas lindas. Para que olhar, então?

“O futuro está tão longe, Tania, mas tão longe que não vale a pena perder tempo falando dele.”

“Peter.”

“Hmmm?”

“Você. Você já escreveu coisa assim para alguma mulher? Nunca escreveram nada parecido para mim. Me sinto tão … tão vazia.”

“Sou um jornalista, não um escritor, Tania. As coisas que posso ter escrito para mulheres que amei e perdi devem ser muito ruins, francamente. Não tenho o lirismo, a melancolia necessária para fazer coisas sentimentais. Sou um … durão. Um homem durão, como um caubói daqueles faroestes antigos.”

Riram.

Então a puxou para si, e se amaram mais uma vez ao som daquela música tão tola, desta vez com uma sofreguidão que até então estivera ausente da rotina erótica leve e alegre que tinham criado.

Um homem faz o que tem que fazer

23/04/2011

Zapeio a televisão e paro em Shane, um clássico do faroeste.

Paro tudo e vejo. Mais uma vez.

Gosto do herói solitário, incorruptível, melancólico, gosto do homem que “faz o que tem que fazer”, como Shane diz e como Shane é.

Shane não quer mais usar a pistola com a qual é exímio. Rápido, certeiro.

Mas um homem faz o que tem que fazer. E então ele a tira da gaveta onde jazia para enfrentar os vilões que querem matar o dono do rancho em que ele trabalhava para tomar suas terras.

Ele tentara viver uma vida pacífica, mas não era isso que a fortuna imporia a ele.

Um homem faz o que tem que fazer. No caso dele, isso significava sacar a arma e matar vilões até que um deles algum dia fosse mais rápido.

A primeira vez que vi Shane me marcou, particularmente, a cena em que ele se despede da mulher do dono do rancho, que ele amava silenciosamente, respeitosamente. Homens como Shane, em sua pureza inexpugnável, jamais avançam sobre mulheres alheias.

Sou um obcecado por cenas de despedidas. Elas contêm toda a tensão, toda a grandeza épica que um caso de amor pode ter.

A mulher pergunta a Shane, ao vê-lo partir, quando voltariam a se ver. Ele avisa que está indo embora para não voltar.

“Nunca mais?”

“Nunca é tempo demais”, ele responde. Never is a long time.

Escrevi um romance aos 30 e poucos anos ao qual dei exatamente este título. O personagem principal esperara uma vida inteira para, numa despedida, poder dizer essa frase.

Guardei esse romance na gaveta. Jamais quis publicá-lo.

Um homem faz o que tem que fazer.

Once upon a time in Parsons Green

18/04/2011

Peter estava com Tania no Seven Bells, um pub em Parsons Green. Era um de seus pontos prediletos de Londres. A pint era boa, a comida era boa, o preço era bom. Peter gostava de se sentar com os olhos voltados para a praça de Parsons Green. Ficava vendo as crianças de patinete, os casais namorando na grama, homens e mulheres lendo ou simplesmente deitados sem fazer nada. Peter jamais descobrira o mistério da grama londrina. Você não tem que usar uma toalha de anteparo para se deitar. Você pode sair do escritório para comer um sanduíche na grama, como num piquenique, deitar em seguida para descansar e depois basta se chacoalhar para poder outra vez voltar ao trabalho, sem ter que tomar banho ou trocar de roupa.

Nada é tão londrino quanto deitar na grama de um parque.

Peter pensava por que se apaixonara por Tania. Verdade que ela era atraente, verdade que seu acento ucraniano era extremamente charmoso, verdade que era simplesmente matadora a tatuagem do violino de Man Ray nas costas brancas de quem nasceu, cresceu e viveu com sol escasso. Verdade que, como uma Ibiza Angel que era, uma das lendárias massagistas do Empire, o cassino de Londres de Leicester Square, seus dedos sutis e ao mesmo tempoo intensos provocavam múltiplas sensações boas no homem. Verdade que no sexo ela parecia sempre faminta, voraz, disposta a agradar.

Mas não era isso. Ou não era apenas isso. Tania sabia fazer um homem se sentir único. Olhava nos olhos nas conversas, não perdia uma só palavra, ria das piadas. O riso não era alto e grosseiro: era suave e transmitia sinceridade. Tania não desviava a cabeça quando um homem bonito entrava no bar, no restaurante ou onde fosse. Peter, com ela, se sentia único e insubstitível.

Quem pode resistir a uma mulher assim?

“Você parece preocupado”, ela disse.

E estava mesmo. Mal tocara no prato, uma combinação de linguiça, purê de batatas e um molho agridoce. Claudio lhe telefonara na noite anterior. Queria desabafar. E ouvir o amigo.  Serra fora hostilizado por petistas numa andança pelo Rio. Alguma coisa fora atirada nele, e ele acabou fazendo uma tomografia. Imagens mostrariam, depois, que o que jogaram em Serra era uma bolinha de papel. Aparentemente, ele queria tirar proveito político do episódio. Estava atrás de Dilma e isso poderia ajudar. Mas o dono do jornal queria que Claudio escrevesse um editorial em que sublinhasse a intolerância dos petistas diante da divergência.

Claudio não era petista. Tivera problemas, na juventude, com petistas em disputas em movimentos estudantis. Mas era jornalista. Um editorial sério teria que questionar, muito mais que os braços que atiraram a bolinha de papel, o teatro de Serra. Não havia uma só marca de nada em sua cabeça. Como era de esperar, a tomografia não acusara rigorosamente nada.

Mas não era este o editorial que o dono pedira.

Claudio acabara escrevendo o que lhe fora mandado, depois de relutar. Cada palavra saíra com repugnância, mas saíra. Tinha que falar com alguém, e essa pessoa era Peter, seu velho amigo. Dissera que nunca se sentira tão irrelevante como jornalista. Estava pensando em se demitir. A perspectiva de escrever no futuro coisas como aquele editorial o apavorava. Pensava, quando jovem, que poderia mudar o mundo com o jornalismo. Agora percebia que não conseguia sequer mudar uma ordem do patrão.

Mas.

Mas o salário, os bônus, as obrigações pesavam, e não pouco. Peter aconselhou Claudio a não fazer nada até o final das eleições. Sugeriu que tirasse férias depois e viesse a Londres, onde poderia espairecer e decidir com calma seu futuro. De resto, Peter disse a Claudio que o espaço dos editoriais era dos donos, e não dos editores do jornal.

“Algum problema no Brasil?”, perguntou Tania. Ela estava comendo uma salada de folhas com brie derretido. Era vegetariana.

“Nada, nada”, disse Peter. Não iria aborrecer Tania com uma história de bastidor de redação.

“Minha mãe diz que um homem bom merece ser tratado como um rei quando está preocupado”, disse Tania.

“E …”, disse Peter.

“Você é um homem bom.”

“E …”

“Sou uma filha obediente.”

“E …”

“E parece que uma chuva caiu em mim. Estou completamente molhada.”

“E…”

“Então acho que a gente deve terminar logo essa comida””, disse Tania. Ela se inclinou para Peter, deslizou a mão direita sobre sua coxa, e viu que ele queria exatamente a mesma coisa que ela.

O editor deve levar a estagiária para a cama?

13/04/2011

Um romance está sendo escrito.

E é solicitada a ajuda de vocês.  Ele é passado numa redação de jornal, e uma das tramas centrais é a atração que o diretor sente por uma estagiária.

A questão: ele deve ir adiante?

Um trecho:

Claudio acordou no meio da noite pensando em Daniela.

Devia ir adiante no que seu instinto mandava ou era melhor obedecer à razão?

Estava, no momento em que pensava nisso, com o que poderia ser definido como um estado de ereção pulsante. A imagem de Daniela provocava isso nele. Como esquecer a tatuagem em seu coração atrevido, que ela lhe mostrara por segundos petulantemente num bar, e na qual se lia seu nome, Claudio? Como esquecer, mais que tudo, o rabo de cavalo que dava a ela um ar de normalista?

À turgidez física se contrapunha a reflexão fria. Romances em redação são complicados, sobretudo quando a diferença de idade é muito grande. Entram em cena ciúmes perigosos. Passou pela cabeça de Claudio uma frase de Rochefoucault, o grande autor de máximas francês do século XVII: “O ciúme nasce do amor, mas não morre com ele.” Claudio tinha um exemplar com anotações do livro de Rouchefoucault. Regulamente o lia ao acaso durante alguns minutos porque o fazia lembrar, sempre, da miséria humana. Rochefoucault não tinha nenhuma fé na virtude das pessoas. “A maior parte de nossas virtudes são vícios disfarçados”, escrevera.

Não que os romances entre jornalistas tivessem que acabar em sangue, como foi o caso da paixão doentia que ligou o diretor do Estadão Pimenta Neves a uma jovem jornalista. Mas é difícil que terminem bem, pensava Claudio.

O problema é que a ereção não cessava.

Acendeu o abajur para ler. Fazia isso sempre que acordava no meio da noite. Não ficava se mexendo, torturado, angustiado. Simplesmente lia até voltar a dormir. Apanhou um livro de poesia de Auden. Abriu em qualquer página. Foi dar num poema que se chama Leap before you think. Pule antes de pensar.

The sense of danger must not disappear:
The way is certainly both short and steep,
However gradual it looks from here;
Look if you like, but you will have to leap.

Um sinal?

Não que Claudio acreditasse nisso. Era, tecnicamente falando, um materialista ateu. Só acreditava no que via. No que podia tocar. Desprezava superstições e superticiosos. Mas. Mas era curioso. Parecia feito para ele na questão de Daniela.

Era como se Auden estivesse lhe dizendo: vá em frente antes de pensar muito. Era exatamente esta a mensagem que vinha, também, de sua ereção que já se ia tornando dolorida.

Pense se quiser, mas você vai ter que se atirar.

Xxxxxx

Exatamente naquele momento Daniela estava na cama de seu apartamento com Lívia, designer de uma revista feminina. Não chegavam a namorar. De vez em quando, faziam sexo. Livia era lésbica. Daniela em certos momentos preferia homens, pela intensidade. Em outros mulheres, pela delicadeza. Naquela noite, ela estava fria, distante.

“São necessárias duas pessoas para que o sexo seja bom”, disse Lívia. “Estou sozinha aqui nesta cama. Cadê você, Dani?”

Dani estava em Claudio. Quer dizer, estava pensando em Claudio. Aproximou seu rosto do de Lívia e a beijou na boca com volúpia, mas era Claudio que imaginava alcançar ali com sua língua frenética.

Paixão

11/04/2011

Quero que vocês me ajudem a refletir sobre uma frase de La Rochefoucauld: “A paixão faz do tolo um sábio e do sábio um tolo”.