Quando a dor acaba


Uma mulher me esperava no restaurante. Ela sempre chegava um pouco antes; eu sempre um pouco depois. Fazia muito tempo que não a via, mas certos hábitos jamais se alteram. Vi que ela folheava um livro, acomodada numa mesa para dois. Ela sempre tinha um livro à mão para a hipótese de eu demorar mais que o razoável. O livro que ela lia naquele momento, vi depois, era uma pequena biografia de Marcel Proust sobre a qual eu escrevera na VIP do mês anterior. Era ela. Nadja, meu amor perdido. Ela estava de volta à cidade por uns dias para visitar a mãe. Nadja, depois que rompemos, conheceu um fazendeiro de Mato Grosso. Logo se casaram e ela mudou para lá para viver seu novo amor bucólico. “Tudo bem?”, perguntei. “Graças a Deus.”

Rimos e o gelo se quebrou. Era uma piada particular nossa. Nadja era atéia. Ela jamais acreditara em Deus. Num certo momento, deixou de acreditar também em mim. Foi aí que nosso romance começou a terminar. Reencontros com amores passados servem para mostrar muita coisa. Mostram, por exemplo, como uma intimidade construída em anos pode se dissolver instantaneamente com o rompimento. Você trata com cerimônia constrangida alguém com quem, até pouco antes, tinha a mais absoluta liberdade. “A melhor coisa que você fez por mim, em muito tempo, foi indicar na revista este livro”, ela disse. “Sou realmente grata a você.” Era a Nadja de sempre, irônica, às vezes ferina mesmo num banal agradecimento pela indicação de um livro. “Uma frase”, ela continuou. “Tem uma frase neste livro que talvez seja a mais linda que eu já li. E a mais triste também.”

Ela me passou o livro aberto numa determinada página. Nessa página, uma sentença estava sublinhada. Nadja costuma sublinhar as frases de que mais gosta nos livros que lê. Eu tentei muitas vezes fazer o mesmo, mas minha falta de método jamais me permitiu consolidar esse hábito. Li a frase sublinhada por Nadja. Ela tinha razão. É uma das frases mais tristes que alguém já escreveu. Proust disse: “Nesse nosso mundo onde tudo fenece, tudo perece, há uma coisa que se deteriora, que se desfaz em pó até de forma mais completa, deixando para trás ainda menos traços de si do que a beleza: a saber, a dor”.

A dor. A dor da perda de um grande amor. A gente imagina que vai morrer sem ele. Como dói aquela ausência. Como dói a perspectiva de nunca mais ter nos braços alguém que a gente imaginava ao nosso lado para sempre. Nunca mais. E no entanto quando aquela dor torturadora se vai, vencida enfim pelo correr dos longos dias, o que sentimos não é alívio, mas vazio e frustração. É como se pensássemos: o grande amor exige uma dor eterna, um luto no coração até o último dia. Só que a dor, como disse Proust, dura ainda menos que a beleza. Devolvi o livro a Nadja e trocamos de assunto. O resto do almoço foi alegre. Lembramos certas passagens de nosso romance como na cena final de um dos meus filmes preferidos, Annie Hall, de Woody Allen, e rimos muito. Lembramos, por exemplo, o dia em que entramos por acaso numa festa de firma num bar no Terraço Itália e acabamos comendo mais, bebendo mais e rindo mais do que qualquer pessoa naquele salão. Lembramos a madrugada bêbada numa boate em que uma prostituta recomendou compostura a Nadja. E então era tempo de despedida. Sem drama. Ela refizera sua vida e eu a minha. Ela voltava para Mato Grosso e eu para minha vida de escritor barato. Já não doía como doera nem nela nem em mim, mas ali compreendi com clareza que a morte da dor amorosa também pode, de uma forma estranha, doer.

16 Respostas to “Quando a dor acaba”

  1. Monique Buzatto Says:

    Quando eu tinha 6 anos e os meus passarinhos morreram, eu morri um pouco, também.
    Por uma ou duas semanas, fiquei sem comer, sem brincar e chorava.

    Mas eu não desistir de pets por causa disso.

    A dor nunca acaba, mas ela fica menor à proporção que nos permitimos ser felizes de novo.

  2. nardele Says:

    Eu estou, neste momento, pensando que a dor do fim da dor há de ser menor do que a anterior, a dor da perda do amor.

  3. nardele Says:

    Ah, indiquei seu blog ontem no meu blog, ousadia minha!

    • Fabio Hernandez Says:

      Oi, Nardele

      desculpe a resposta tão atrasada, é que estive fora de órbita por um bom tempo. obrigado pelas palavras tão generosas, e pela indicação. bj

      F

  4. Luis Jhonne Says:

    Fábio, sempre me supreendendo com ótimos textos.

    A dor do amor, realmente, nunca deixa de doer.

  5. Norma Says:

    Demais!
    Caracas, como eu adoro seus textos!
    Estava sentindo falta desses.

    Esses dias escrevi que eu não consigo entender o porquê de ex-namorados não serem amigos. Talvez seja pela dor… pela dor do fracasso de quem não conseguiu cumprir suas promessas… enfim… nem sei o que eu estou escrevendo.
    Mas dói também perceber que a perda de um amor não machuca mais. Parece que… nos tornamos resistentes e não queremos, temos medo de sermos frios.

    Eu sou apaixonada pelos seus textos.

    Um beijo.
    Até mais.
    Com carinho, Norma.

    • Fabio Hernandez Says:

      Nossa, Norma. que carta legal, e eu demorando uma eternidade para responder. Fora do ar por um bocado de tempo. Sorry. Obrigado e beijo

      F

  6. Karina Says:

    Fazia tempo que não comentava aqui, me acostumei a ler Fábio Hernandez em silêncio. Mas este post traz um dos temas mais incríveis dO Homem Sincero. Quando o li pela primeira vez escrevendo sobre isso, a dor que causa reconhecer o fim da dor, refleti um bocado. Acho que foi mais ou menos a mesma reflexão que me causou um texto em que compara o amor a latinhas de coca-cola, a inveja que causa um amor desmedido. Ligo uma ideia à outra e penso: quem amou desmedidamente a ponto de se matar por amor também teria, dali a um pouco, experimentado a dor de conseguir simplesmente esquecer aquele amor? Os amores trágicos se sustentam na tragédia de uma forma que não conseguiriam se colocados à prova da ação do tempo? Estou misturando as coisas, mas, enfim, o que quero dizer é que essa consciência do fim da dor sempre me volta. E acho que ela nos faz de certa forma desprendidos. Esse é o lado bom. E é também o lado ruim.

  7. Julia Duarte Says:

    É um dos melhores textos, Fabio.

    Não me canso de ler. Quando a dor acaba, dói.

  8. Monique Buzatto Says:


    “Mãe, odeio essa música!”
    “Ué, você gostava tanto… Catou até enjoar. Me enjoou. Agora odeia? :P”

    2 minutos e meio que pareceram 2 horas e meia.

    Cada acorde suave e dedilhado foi mais violento que gritos e brigas e tapas. Pra cada palavra “felizinha” da música, deu vontade de gritar “MENTIRA!”,
    Mas simplesmente fiquei. Sem reação.

    Foi estranho e… Doeu.

    A música acabou e eu pensei: “Acabou.”
    Mas não parou de doer ainda.

    [Acabou assim:
    “Então vamos fazer assim, Monique: a gente finge que nunca me conheceu. Se um dia a gente se ver na rua, a gente se ignora.”
    “Você me subestima… Por que não pede alguma coisa difícil? Adieu.”]

    Não dói por causa dele, que é um babaca.
    Não dói por a gente se odiar.
    Não dói por eu achar que talvez a gente nunca tenha se amado.

    Só dói.

    Sei que vou sentir esse aperto (horrível) de novo.
    Mas na próxima vez que eu ouvir a música?
    Daqui 1 semana?
    Daqui 5 anos?

    Será que eu não trabalhei bem a minha felicidade, segundo a minha brilhantíssima (e imatura) teoria do primeiro comentário,
    ou será que eu ainda sou arrogante demais pra admitir que o meu ponto de vista (sonhador e otimista) nem sempre é o suficiente pra curar a gente desse tipo de coisa?

    😦

    Lembrei desse texto depois de tomar água.

    Desculpa o desabafo.

  9. Diego Pollon Says:

    De fato.. a dor que sentimos ao perder algo não é a dor vazia de quando não sentimos mais falta desse algo, principalmente se não temos algo que preencha novamente… complexo? rs.. vcs entenderam…
    mas enfim.. quando estamos sentindo a dor da perda.. estamos realmente sentindo a dor da perda.. pensando em quão infelizes somos e desgraçados somos por passar por isso… que nunca teremos dias melhores.. que a vida é uma merda.. e coisas do tipo… e quando isso tudo acaba? oq pensar? oq sentir? a falta do sentimento causa uma dor maior!
    Estava eu aqui me consolando, via EmeEsseEne, com sua leitora assidua, Monique.. sobre a amizade de um melhor amigo(fato questionado por ela e tantas outras pessoas) e ao ler isso percebi que talvez.. seja esse o vazio que doi.. e não a cadeira vazia ao meu lado no buteco bebendo cerveja. (exemplo apenas! não bebo! nem frequento butecos! rs)
    É isso.. o link de seu blog já esta em meus favoritos (do Google Chrome! IE não! rs)

    Té.!

  10. Amanda Says:

    Ótimo texto! Gostei especialmente do comentário sobre a perda de intimidade instantânea, uma “cerimônia constrangida”. Lindamente conciso! Obrigada Fábio. Isto está sendo catártico para mim.
    🙂

  11. Elas Says:

    Verdade que qdo a dor vai embora e fica aquele vazio, aquela frustração, dói tb… uma outra dor. Principalmente qdo se trata de relacionamentos. A gente gosta de chorar por um coração partido… e abrir mão da dor é abrir mão de uma história…

  12. Renan de Dijon Says:

    É sadismo ficar revendo ex-namoradas. Vire a página.

    🙂

  13. Fabia Says:

    olá. Encontrei esse site enquanto pesquisava uma maneira de superar a dor da perda de um amor. Tds dizem q é o tempo, e mts dizem q eu tenho q ser forte. Não aguento mais ouvir isso! Queria poder dormir e acordar daki a um ano… mas, impossível, principalmente qdo se tem duas cçs… Fui traída no meu primeiro casamento, e me dei o direito de tentar ser feliz novamente… Mas não me perguntei se, ao pular do trampolim sem páraquedas, encontraria a piscina cheia ou o vazio do ladrilho… é mta dor e o mundo não parou para eu poder juntar os cacos…

    • Fabio Hernandez Says:

      Fabia, é como atravessar uma ponte. É passo a passo. Uma hora passa, e vc vai pensar, como Proust, que existe paradoxalmente dor também quando você se dá conta de que a dor passou … Se eu fosse dar um conselho prático, diria apenas para tentar não pensar fixamente nisso. Tente desviar a mente para outras coisas.

Deixe um comentário