Memórias de um tolo


NUM FILME CLÁSSICO, Laura, um personagem se apaixona pela mulher que vê num quadro. É um policial, e a mulher era a vítima de um assassinato que cabia a ele investigar. Isso acontece de vez em quando, você ver alguma coisa e ficar com o coração batendo forte. Comigo, por exemplo. Vi outro dia no YouTube, por acaso, uma cena de um filme que sequer sabia que existia, Flashbacks of a Fool. É de 2008, e o papel principal é de Daniel Craig, o atual James Bond. A cena é uma recordação dele quando adolescente, percebi depois ao pesquisar o filme e ver o trailer.

A imagem de Laura fascina o policial no filme clássico

A imagem de Laura no quadro fascina o policial no filme

Toca uma música linda, que eu também desconhecia, do Roxy Music,  e o garoto apaixonado é conduzido a uma dança com dublagem pelo seu primeiro amor. When You Were Younger, cuja letra é simples e tocante, é a canção. Não me lembro de outra cena de filme tão bonita que eu tenha visto nos últimos anos. O trecho essencial da música:  Shake your hair girl with your ponytail/Takes me right back (when you were young)/Throw your precious gifts into the air/Watch them fall down (when you were young)/Lift up your feet and put them on the ground/You used to walk upon (when you were young. Balance sua cabeça com o rabo de cavalo, menina, e assim eu volto no tempo, numa tradução meia boca do começo. E por aí segue a letra, lírica e evocativa.

O diálogo naquela cena diz um bocado para mim e minha geração, que descobriu o mundo nos anos 70. Num determinado momento, ele pede a ela que escolha entre David Bowie e Brian Ferry, do Roxy Music, e ela diz que não é justo. Se fosse para escolher entre um deles e o Deep Purple, tudo bem. Mas Bowie e Ferry são ”deuses”, ela diz. Ela fala de Jean Genet e Burroughs, escritores malditos que naquele tempo eram avidamente lidos por jovens como os do filme, e eu mesmo.

Vi trechos do filme, caoticamente, no YouTube, mas vou ver se encontro o dvd. O diretor dá aqui algumas explicações. Pelo que percebi, é um cruzamento de Verão de 42 com Imensidão Azul. Craig faz um ator de sucesso que acaba vítima da bebida sem limites, e tenta buscar a redenção voltando ao passado, para o lugar em que viveu sua era da inocência e em que conheceu a garota que o fez ver o mundo sob um ângulo diferente. Sempre que vejo esse tipo de situação, volto a Gatsby, de Fitzgerald, e sua frase sublime final segundo a quem remamos todos contra a corrente, em busca dos dias passados.

Minha era da inocência, então, parece me cercar por inteiro. Papai, mamãe, meus irmãos, meus amigos, a esquina em que nos reuníamos, todos nós no esplendor que a memória garante. O futebol, a camisa do meu time, o uniforme da escola, o ônibus branco e azul, a placa do ginásio, o sorvete de chocolate no parque, o fusca vermelho do meu pai, o cabelo majestosamente protegido pelo laquê de minha mãe, o mingau. Os gibis do Fantasma, do Mandrake, do Superman, do Cavaleiro Negro, do Batman. Mancha Negra e Mickey, Maga Patológica e Madame Min. Hercule Poirot e Miss Marple, Pedrinho e Emília. Dona Isabel e Zé Verdureiro.

E ela. Olhos verdes, vestido azul e branco de escoteira, ela mesma, a quem um dia, muito tempo atrás, dei uma foto dedicada à menina de 15 anos mais linda que jamais existira, ela, exatamente ela, que fez o chão tremer pela primeira vez para mim, assim como a garota do filme que sequer vi, mas pelo qual fiquei obcecado como um tolo.

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25 Respostas to “Memórias de um tolo”

  1. Anarcoplayba Says:

    O triste das recordações é que elas são histórias que vão, a cada dia, se perdendo.

    Já parou para pensar que nós somos os guardiões de nossas recordações e que, quando partimos, elas se perdem?

    Isso dá uma dimensão nova à velha cena de blade runner:

    • Karina Says:

      Aqui n consigo ver o vídeo, Anarco. A cena é aquela final em que ele diz que as lembranças vão se perder no tempo como lágrimas na chuva?
      Linda, linda, linda.

    • Fabio Hernandez Says:

      nossa, como vc mandou bem, anarco. é uma cena belíssima. sábia, tocante. ‘as coisas se perderão no tempo como lágrimas na chuva’. uma das maiores cenas do cinema. time to die é uma frase tão forte para mim que a usei num título de um texto que me é caro. tempo de morrer. obrigado.

      é, karina, é aquela cena mesma, e vou tentar ver memórias de um tolo. obrigado.

      • Anarcoplayba Says:

        Essa mesmo, Karina.

        E é uma das coisas mais pesadas que eu já vi, e de certa forma me inspirou em um dos textos mais desesperados que eu já escrevi, e que basicamente se resume ao monólogo do Replicante: “Eu vi tantas coisas… coisas que vocês nem acreditariam. Mas agora todas as recordações vão se perder, como lágrimas na chuva.”

        E sabe a ironia, Fábio? Essa frase nunca foi escrita. O Rutger Hauer improvisou na hora.

      • Fabio Hernandez Says:

        Não sabia, Anarco. Que improviso inspirado.
        E sem abusar … poxa, dá o link do seu texto, por favor.

      • Anarcoplayba Says:

        É isso: http://anarcoblog.wordpress.com/2007/11/10/eu-hoje-joguei-tanta-coisa-fora/

  2. Karina Says:

    Esse filme é ótimo, Fabio Hernandez, vale assistir. Pode até passar à frente do 500 Dias com Ela 🙂
    Mas a melancolia do personagem do Craig vai além dessa nostalgia, há um acontecimento bem determinante que desencadeia todo o processo que acaba misturando remorso e impotência.
    Em uma das passagens marcantes do filme, ele marca um encontro com a menina do rabo-de-cavalo por quem é louco (ele e todos os meninos), mas chega atrasado pq teve uma tarde quente com a vizinha casada, mais velha e sedutora. Qd chega ao encontro, a menina do rabo-de-cavalo n quer mais. E a partir daí se desencadeia uma parte dos porquês da história toda.
    Assista, assistam.

    De Gatsby, a passagem que guardo e da qual vez ou outra me lembro é quando ele se dá conta de que a paixão da juventude não é mais a mesma e que aquela menina que ele tinha na memória não existe mais senão nas suas lembranças. Aí ele assume essa consciência de que nadar contra a corrente vai ser sempre uma busca vã, pq o passado n volta. No filme, isso tb acontece.

    Reconhecer e aceitar que o passado ficou lá atrás pode ser libertador.

  3. Luis Jhonne Says:

    O comentário de cima, da Karina, diz tudo sobre o filme. Sobre toda a trágica história do protagonista. Um filme bom. Lembro que assisti por essa época natalina, no ano passado. E, assim como o Craig, senti que o passado, não volta mais.

  4. Karina Says:

    Ainda sobre o Gatsby, fui buscar o trecho de que falei. E cabe uma correção: n foi propriamente Gatsby quem se deu conta daquilo, essa foi a impressão que passou ao narrador:

    “(…) vi que a mesma expressão de perplexidade tornara a estampar-se na fisionomia de Gatsby, como se uma leve dúvida lhe ocorresse quanto à índole daquela sua felicidade. Quase cinco anos! Devia ter havido momentos, mesmo naquela tarde, em que Daisy ficara muito aquém de seus sonhos — não por culpa dela, mas devido à enorme vitalidade da ilusão que ele alimentara. Sua ilusão tinha-se projetado além dela, além de tudo. Ela lançara-se ao seu sonho com uma paixão criadora, acrescentando-lhe incessantemente alguma coisa, enfeitando-o com todas as vigorosas plumagens com que deparava. Quantidade alguma de ardor ou de entusiasmo pode competir com aquilo que um homem pode armazenar em seu fantasmagórico coração.”

  5. Karina Says:

    Li seu texto, Anarco.

    Pra mim isso é meio complicado. Procuro manter essa consciência do passado, do fim, da morte… pq assim é. Experimento meus breves momentos de plenitude (aquilo que chamo de felicidade) sabendo que amanhã vai ser diferente. Sempre é. Não há felicidade que dure pra sempre. E a gente vê alguma justiça na vida qd percebe que tb não mal que nunca se acabe. Mesmo. Assim é. Assim vai girando a roda da vida. Por isso mesmo insisto sempre que devemos nos prender ao que vivemos, não ao que perdemos. Ontem estava assistindo a uma entrevista do Miguel Falabela e ele citou um ditado atribuído aos Sufis que traduz exatamente isso: “Feliz aquele que conhece o perfume do que perdeu”.
    É como penso. E acho que dói menos.

    • Anarcoplayba Says:

      Então, Karina… o Bizarro é que após alguns anos, eu mudei de opinião: acredito hoje que as coisas não se perdem. É uma crença religiosa e, portanto, irracional.

      Mas é real.

  6. Alice Barros Says:

    Impressionante a sintonia desse texto com o dia de hoje, em que estive rodeada de memórias ótimas.
    Os filmes citados são lindos, assisti e adoro todos. Do mesmo modo o texto do Anarco.
    Fazia uns dias que eu não tinha tempo de visitar o blog do Dad, mas amei ter visitado justamente hoje, só pra ler essas palavras e finalizar muito poeticamente o meu dia.
    Adoro!
    =*

  7. Heleno Says:

    O filme é terrivelmente belo e trágico. Recheado de lembranças, amores fracassados e mortes – tem um bom elenco e história, mas passou despercebido no Brasil. Também tomei conhecimento, acreditem, na rua comprando um DVD pirata(!) Mas confesso que depois que assisti (e gostei), comprei o ORIGINAL na loja.

    Nunca se deve deixar as coisas pela metade, sem uma solução… é a grande mensagem do filme.

    É um de meus 10 filmes favoritos da década de 2000.

  8. Nicky-san Says:

    [diálogos durante compras de natal no shopping]

    D: Então peraí. Você desenhou um mulequinho coçando a cabeça, ganhou um concurso de desenho, foi pra Disney com tudo pago, andou de patins em Miami, foi no Piratas do Caribe em 1994 e vem me dizer que NÃO LEMBRA!?
    M: Eu lembro do Piratas do Caribe. O resto, não.
    D: Meu Deus, em que planeta você vive?
    M: Eu sei que foi bom e sei que curti a Disney. Mas ah… Não lembro.

    Os dois vão pra Starbucks.
    D, inconformado com a revelação da amiga. Para M, “tanto faz”.

    • Nicky-san Says:

      Sobre essa coisa de jogar as coisas fora, eu sempre faço isso. As agendas do colégio, com as declarações de amizade eterna… Os textos dizendo “Meu Deus, o Dudu falou ‘oi’ pra mim hoje! Tô apaixnonada”… Jogar fora aquele papel de presente em que seu ex fdp embrulhou aquele bichinho de pelúcia que te agradou tanto…

      Shakespeare:
      “Conservar algo que te lembre seria admitir que posso te esquecer.”
      Mas eu discordo. Conservar algo que possa lembrá-lo é admitir que você não quer esquecê-lo. Nossas memórias são efêmeras demais pra que a gente confie no cérebro, por que não dar uma ajudinha?

      Quando a gente quer comprar roupas novas, não precisa limpar o guarda-roupa? Se eu não jogar fora aquele vestido vermelho que usei na última formatura, não vai ter espaço pra guardar aquele vestido preto que eu ando paquerando há umas semanas, que quero usar no casamento do próximo primo. É uma questão de sobrevivência.

      Pra quê ficar com as lembranças velhas (que já passaram mesmo) se a gente pode viver e fazer memórias novas?

      As que importam de verdade, a gente não esquece, mesmo que não tenha UMA foto ou UMA anotação na agenda…

      @Anarco: seu texto foi de arrepiar.

    • Karina Says:

      rsrsrs isso significa que vc tb viu o filme, Nicky?

      Entendo, entendo perfeitamente, esse “tanto faz”. O que vale de verdade é a sensação que despertou. Apesar disso, algumas imagens/passagens sempre marcam.

      • Karina Says:

        ops… acho que n significa que viu o filme, né? estava falando sobre memórias mesmo. ok.

      • Nicky-san Says:

        rs
        É, Ka, não significa que eu vi o filme.

        Acho que ainda não é hora de ver esse filme… Sei lá.

        Sabe no que pensei quando li o título do texto?
        Naquela música do David Bowie, no começo de Moulin Rouge
        ♪ While he spoke of many things… Fools and Kings… This he said to meeeee ♫

        Adoro Moulin Rouge… E pensando bem, tem um pouco a ver com esse tema.

      • Karina Says:

        Qd vi Moulin Rouge a primeira vez fiquei extasiada. Depois enjoei fácil. Mas aquela cena em que os dois cantam o medley é uma coisa!!

        – All you need is looooove
        – Love is just a game
        (…)
        – Love lifts us up where we belong. Where eagles fly, on a mountain high!
        – Love makes us act like we are fools. Throw our lives away, for one happy day…

        =D

      • Fabio Hernandez Says:

        Sabe o que eu acho engraçado, Karina? Ver um mesmo filme mais de uma vez. Tem que ser um daqueles quatro ou cinco filmes que realmente te marcam, ou você enjoa mesmo.

      • Nicky-san Says:

        Eu fico arrepiada quando a Satine canta “The Show Must Go On” com o Ziedler (esse o nome dele?)

        É uma cena linda…
        ♪ My make up may be flaking but my smile still stays on… ♫

        Não só pelo filme…
        Pensa em todas as vezes em que a gente precisa engolir uns sapos e sorrir… Ou pior, ficar quieta.

        É um dos meus filmes preferidos. Tem cara de que vai ter final feliz, mas…

        =/

      • Fabio Hernandez Says:

        E eu achei mto legal qdo em 500 Dias ela fala que gosta do Smiths qdo ele tá ouvindo aquela música do doubledecker que é mesmo um arraso…

  9. Karina Says:

    =D

    Não vai ter post natalino, né, Fabio Hernandez? rs Como em breve estarei na minha missão noel (ho!ho!ho!), deixo a todos aqui meu desejo de uma noite feliz rodeada por pessoas queridas, bons sentimentos e… aquelas comidinhas deliciosas!!

    Beijos!!

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